Não fuja da luta, covarde

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Empate

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

O Mal- Estar no Litoral Neoliberal Sul, Epílogo Os homens e suas picas sonoras

  


Por Fábio Dal Molin

Raul Henrique Rojo, cujo nome é quase um trava-línguas, foi um dos grandes professores que eu tive no doutorado em Sociologia na UFRGS. Ele ministrava um seminário sobre o Estado e os processos de transformação social. Rojo era um professor das antigas, educadíssimo, culto, intelectual entusiasmado, multilíngue. Seu português era impecável, com um leve sotaque, e raras vezes escorregava nas palavras hispânicas.  Em uma das raras ocasiões, um tanto chistosa, ele falou “na Idade Média os homens guerreavam com picas”. Para quem não sabe, “pica”, no idioma de Cervantes, é uma maneira de denotar “lança”

De certa forma, quando chegamos  ao velho Freud e suas considerações um tanto misóginas sobre as diferenças sexuais e os objetos de fetiche, a escorregadela do meu querido professor faz algum sentido. Não é à toa que a sociedade capitalista, gestada e concebida no mercantilismo escravocrata e judaico cristão, se confunde com a dominação masculina, o patriarcado e um sistema de valores  que compara tudo, os que dominam e os que são dominados, o que vale mais e o que vale menos, e uma palavra que é comum a Freud e Marx define a história que quero contar hoje: Fetiche. Para Freud o fetiche é um excesso de energia afetiva e sexual direcionada fora do lugar, em um objeto substituto. Ainda que não diga o mesmo, Marx fala do fetiche da mercadoria como um valor abstrato diferente do valor da mercadoria em si que lhe confere propriedades quase mágicas, como um relógio de pulso que vale 400 mil reais, que ocupa a mesma função de um relógio de 50 reais se ambos mostrarem a hora certa.

O que eu quero dizer com tudo isso é que mais uma vez precisamos falar sobre as massas e suas caixas de som

Figueirinha é uma prainha sossegada de Arroio do Sal, e seus veranistas tradicionais valorizam isso,

A casa ao lado da que veraneamos é de um vizinho antigo e amigo da família,  que neste ano novo  optou por alugar. Os velhos laços de amizade praiana prescindiram de muros.

Tendo em vista minhas observações descritas aqui nesta série sobre o ‘homo litoraiensis” senti um arrepio quase premonitório. Dito e feito

 Uma imensa familia ocupou a casa, e como não bastasse a algazarra de crianças e cachorros ( que hoje é musica para meus ouvidos”, ali estava aquela caixa de som brutal,naquilo que não pode mais ser chamado de som alto. Aquilo é uma arma. Se eu quiser ter uma banda e ensaiar em casa ou  organizar um baile há normas de isolamento acústico, assim como nos lugares onde o porte e a posse de armas é permitido há restrições para calibre e munição. Mesmo nos EUA os civis podem adquirir fuzis mas não podem ter armas nucleares. E essas caixas de som são armas nucleares. E as pessoas conversavam em torno da caixa, cujos decibéis preenchiam a rua toda e faziam o chão tremer com um som que não era música. Era uma sequencia de musica eletrônica curta e muito grave, em ciclos.E por um momento meu coração se encheu de tristeza e assombro ao perceber que nenhuma pessoa da família se preocupava com seus ouvidos com os de suas crianças, e também sequer imaginava que aquele som invadia as outras casas e importunava os vizinhos. Eles sequer percebiam a música que tocava, a caixa era um objeto cujo valor estava contido no fato de milhares de famílias iguais terem caixas iguais. Quem não tem esse objeto é considerado inferior, condenado para sempre a inveja da caixa, formando um laço libidinal  concentrico incapaz de perceber o Outro lá fora. É isso que Freud diz na psicologia das Massas. O Narcisismo das pequenas caixas de grandes sons; Então meu treinamento marcial veio á tona. A palavra Kung Fu significa “treino” e a palavra certa para Arte Marcial é “Wu Shu”, “acabar com a luta” , que pode ser eliminando o adversário ou deixando ele cair no vazio sem lutar

Então eu respirei fundo e lembrei da Arte da Guerra " seu inimigo e alguém igual a você ". Sun Tzu foi um grande general estrategista que teve sucesso em inumeras batajhas, mas por outro lado morreu assassinado por alguma emboscada que ele mesmo tinha criado.

Chamei o vizinho pela grade ,  esbocei meu mais franco sorriso fruto de alguns anos de estudos de Teatro dei Feliz ano novo, dei boas vindas a Figueirinha e pedi para eles virarem a caixa de som ou baixarem um pouco o volume.  Imediatamente o cara baixou e eu desejei muita diversão na noite , agradeci e recebi um Feliz ano novo.

 A família recolheu o som para dentro da casa, fizeram algum barulho de churrasco. Meu coração estava batendo como se eu fosse o Aragorn no Retorno do Rei

 Às   11 da noite do dia 31  estava um silêncio sepulcral em Figueirinha.


domingo, 19 de fevereiro de 2023

O Mal-Estar no litoral neoliberal: torpedo narcísico, o supereu e os roqueiros reaças



Por Fábio Dal Molin

 Praia da Pinheira, mar azul turquesa cheio de barcos de pesca ancorados e albatrozes, a natureza explode em exuberância.

Ontem foi dia de Happy Hour na cervejaria artesanal, meu lugar mundo praiano porque, além das maravilhosas e frutadas Ipas , toca rock pesado e livre na playlist da TV.
E ontem a trilha sonora com imagem era um show do Iron Maiden. Tres homens estavam sentados na barra e davam sinais de terem passado a tarde ali. Falavam de música e de shows, talvez inspirados no que passava na TV. Eram gaúchos, do interior, descendentes de italianos ou alemães, e falavam de espetáculos Inesquecíveis, os mesmos eu fui:Iron Maiden, Black Sabbath, David Gilmour , Roger Waters.
Então um deles, que estava sentado de costas para mim no balcão, preferiu uma frase que eu já conhecia, mas até a achava que era folclore de Internet " O show do Roger Waters estava bom mas tinha muita política " . Levei um choque. Em algumas circunstâncias eu até entraria na conversa, mas como a diferença etílica era grande ( eles estavam nas últimas cervejas e eu estava na primeira ) e essa frase me atingiu como um torpedo narcísico eu nem pensei nisso.
O papo seguiu. Eu senti tristeza, pois compartilhava muito com eles, eram meus conterrâneos, classe média, das mesmas origens e com o mesmo gosto musical, a ponto de um deles ter dito " o melhor show que já fui foi do Black Sabbath na FIERGS...
ESSA FRASE É MINHA. "Eu sou você " diz Narciso para a água que diz " você sou eu".
Mais adiante na conversa o sujeito repete " tinha muita politicagem no show do Roger Waters, não se deve misturar música e política " .A pessoa escuta uma banda , compra seus discos, paga 300 reais por um show e simplesmente não entende nada do que significam as músicas, filmes, imagens....sim , ele foi um dos que vaiou a entrada de crianças negras no palco com uma camiseta escrito " antifascismo ", mas o que será que ele pensou quando apareceu aquela fábrica imensa com um porco voando na música "Pigs on The wing"?
Aqui é possível ver a tragédia brasileira, onde uma prótese ideológica foi instalada na subjetividade que impede o cidadão de apreciar totalmente um dos maiores e mais significativos shows de todos os tempos. Freud dizia que o super eu é um representante da lei punitiva, uma demanda do próprio sujeito por culpa. A ideologia dos roqueiros reaça oblitera o gozo da experiência musical plena que nos anos 70 representava um questionamento pulsional do mundo adulto careta, capitalista e armamentista.
A conversa sobre meus shows preferidos fez a sombra do objeto perdido do rock cair sobre mim.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Acerte o inimigo onde ele não está... o Capitão e a Arte da Guerra




 Quatro grandes sábios que viveram cronologicamente antes da era Cristã estão mais separados geofilosoficamente  nas publicações em papel ou digitais do que na vida real

Dois de cada lado da já caduca classificação entre "oriente" e "ocidente": representando o arquipélago grego estão Heráclito e Sócrates, e representando  o continente que hoje é chamado de China estão Lao Tsé e Sun Tzu.

Da ideia de que tudo é movimento "panta rei" de Heráclito sócrates acrescenta a a arte de fazer o outro dar a luz a si mesmo (ou a uma estrela bailarina, diria Nietzsche, leitor de todos esses). "Conhece-te a ti mesmo" é um movimento que Lao Tzé sacou também e chamo de Tao, que se bifurca em um movimento, "Tai-chi", entre duas polaridades "Yin Yang"; Tudo está em constante movimento.  Os eruditos generais chineses eram leitores ávidos de Lao Tsé. Um deles era Sun Tzu, que escreveu na arte da Guerra aquilo que Sócrates disse "conhece-te a ti mesmo" e lascou "como teu inimigo" (ou será conhece teu inimigo como a ti mesmo?)

Lembro do filme " Matrix Revolutions" quando o software "intuitivo" "Oracle" diz para o herói Neo que Smith, seu pior inimigo "ele é você, seu oposto". "Neo" é um anagrama de "one" e "Smith" condensa "it is me".

Após mais de 26 anos escondido pacientemente na lama do Centrão do Congresso, também chamado pelo cientista político Marcos Nobre como "grande PMDB" (tirando os partidos mais à esquerda tudo é um imenso PMDB). Bozo surgiu como aquele lutador desconhecido, cujo exílio o fez desenvolver um novo estilo de arte marcial e que no começo do filme desafia o mestre mais experiente e famoso e o surra sem piedade quase até a morte. 

Espero que alguém aqui tenha visto aqui a luta entre Ivan Drago e Apolo The Creed em Rocky IV, uma  célebre alegoria Mcarthista.

Na sequencia da história o herói Stallone dá o troco em sem adversário  na mesma moeda, com um sistema de treino e estratégia inovador e secreto, e aprende a atacá-lo onde ele não está (ideologia típica de Sun Tzu). E onde ele não está? No seu ponto mais fraco, onde sua imensa força fisica e espiritual obscurece com auto confiança e dissimulação. Ponto cego (ver seminário 11 do Lacan). Lembro de dois estrategistas  do futebol que adotavam essa tática em lados opostos da polaridade: Abel Braga que obrigou seus atletas a assistirem apenas os jogos que o Barcelona tinha perdido e Felipão quando, nos anos 90, fez um time forte e experiente do Grêmio enfrentar uma verdadeira seleção brasileira e mundial do Palmeiras naquilo que seu sublime futebol exigia em troca: libido sem filtro.

Bozo nunca perdeu uma eleição.  Lula perdeu várias até aprender a estratégia de seu inimigo para logo em seguida se sentir também invencivel, até que ele e seu exército serem quase dizimados pelo ataque moral, humano, eleitoral e cibernético. Como os Cylons de Batlestar Galática que reduziram a raça humana ( de 12 planetas ) a 50.000  sobreviventes.

Mas quero acreditar que nossos inimigos são iguais a nós, e afinal, todos temos nossas fraquezas, nossas lacunas, nossos pontos cegos.

No caso do Bozo, diz a ciência política e também Sun Tzu, leitor de Lao Tsé, seu defeito está na sua maior força: sua postura firme e sólida. Na arte da guerra há o momento de ser firme e o momento de ser flexível. Durante uma das maiores tragédias da humanidade, quando muitos de seus eleitores e até apoiadores estavam vendo suas economias e familias serem dizimadas por um vírus,  Bozo, o invencível perdeu, como Roger Waters disse de Trump "no seu mundo ninguém vence".

Diria Nietzsche que as ovelhas dominam os lobos. A metáfora do Gado é precisa, as ovelhas e seus pastores neopentecostais mandam no Brasil.

As forças democráticas brasileiras irão enfrentar alguém que sempre vencem, e aqui há duas estratégias possíveis quando um adversário é maior e mais forte. A primeira estratégia é que temos que lutar com todas as nossas forças como se não houvesse nada após a derrota. Estamos encurralados e diz Sun Tzu que um inimigo encurralado luta  sem se render nunca, então é sábio deixar uma pequena saída. E temos que ser muito fortes. A segunda é atacar o adversário no seu ponto cego. 

E aqui me arrisco a opinar contra os cientistas políticos pessimistas que acreditam que a ideologia Bozista permanecerá independentemente da eleição. 

Um adversário que se acha invulnerável não sabe apanhar.

É só lembrar da primeira derrota de Mike Tyson. Foi por nocaute e ali acabou sua carreira.



terça-feira, 21 de dezembro de 2021

As crônicas invisíveis parte 2 A captura do Beija-Flor

 


Olá, Invisíveis

Hoje a manhã foi gloriosa: sol intenso, mar azul turquesa, vento, praia com uma população suportável para meu padrão Palomar ( ver livro de Italo Calvino sobre um veranista neurótico e taciturno).

Estou na beira da praia expondo minha pele desprovida de pigmentos a intensa radiação solar e o raro silêncio ao meu redor e meu imenso chapéu de palha permitem que eu me concentre profundamente em minha leitura. De repente sinto uma presença e ouço uma voz:

-Senhor

Me fiz de desentendido como faço sempre com alguns vendedores ambulantes ou chatos que às vezes interrompem minha meditação, leitura ou treino de Kung Fu. Ontem mesmo eu estava praticando meu Tai Chi e uma mulher bêbada surgiu do nada perguntando “posso me juntar a você”? O que me obrigou a lançar mão da antipatia típica dos antigos mestres e rosnar “não, isso demora anos para aprender”.

Mas o rapaz insistiu. Desenterrei a cara do chapéu e do livro olhei para ele com uma de minhas piores caras (mesmo meu olhar simpático já assusta um pouco). Ele usava um uniforme, e nas mãos tinha uma engenhoca daquelas de sugar areia e um imenso cardápio.

-Senhor, desculpe atrapalhar

-Sim, atrapalhou

Ele ficou um pouco desconcertado mas seguiu firme “ o sr gostaria de comer algum petisco”?

Para quem não conhece a Praia da Palmeira, especialmente a Praia do Alto (uma agradável e pequena enseada tranquila e de mar calmo), o Beija Flor é hoje o único bar do balneário, daqueles típicos do litoral catarinense: mesas na areia com guarda-sol, cervejinha gelada, peixe frito e aquele clima solar. Imaginem o final de um dia de praia, a pele queimada após o banho e uma porção de peixe frito com uma cerveja mirando o por-do-sol. E o melhor: o repertório musical  é um oásis sonoro em meio a funks, sofrências e terremotos de carros de som. Uma imensa caixa de som dispara Raul Seixas, Pink Floyd, TNT, Led Zeppelin, Tim Maia, Janis Joplin e até Deep Purple.

Mas onde estou mesmo?

Ah, sim, o rapaz.

O Beija-flor é um bar de pescadores e surfistas, e guarda uma certa tradição na praia. Alguns clientes mais assíduos costumavam instalar seus guarda-sóis e cadeiras e pedir sua comida e sua bebida no bar, e os garçons faziam a gentileza de levar e buscar, se o cliente estivesse próximo.

Porém este ano aconteceu algo diferente. Talvez o bar tenha mudado de dono, ou este tenha contratado uma consultoria do Sebrae, ou simplesmente a teoria dos genes egoístas encontrasse finalmente sua comprovação, e o empreendedor que existe em nós desde o Plestoceno tenha encarnado na equipe e engendrado uma ideia que tornaria o Beija Flor o pterodáctilo da praia, um predador sem predadores, o exterminador de vendedores de queijo coalho e milho-verde.

No primeiro dia de praia eu já havia notado as bandeirinhas numeradas ao lado das famílias de banhistas e os jovens correndo de um lado com cardápios e para o outro com bandejas cheias de batatas fritas ou isopores com cervejas. Agora os garçons do Beija-Flor percorrem a praia de ponta a ponta oferecendo os serviços do bar, e para facilitar a localização instalam bandeirinhas numeradas junto aos clientes. Seguindo a velha sina da sociedade industrial capitalista, as relações de amizade e gentileza entre o bar e seus clientes assíduos foi substituída pela administração estratégica, metódica e científica, e Beija -Flor agora havia sido capturado pelo Taylorismo fordismo e pelo inevitável expansionismo neoliberal. Agora toda praia é virtualmente um território do passarinho.

E ali estava eu diante daquele jovem, pensando em como ele havia sorrido e pedido desculpas mas por dentro deveria estar morrendo de raiva de mim, afinal, eu, um homem branco em férias, além de recusar seu serviço, ainda o respondia com um certo tom grosseiro. Mas que diabos, eu estava ali lendo meu livro com atenção, e interrompeu mesmo depois de eu dar sinais de que não estava interessado. Eu pensei por alguns segundos em dizer “meu filho, eu sou psicólogo e posso te dar dicas sobre como ser um bom vendedor: preste atenção no seu cliente, nos sinais que ele dá. Se eu estivesse de bobeira olhando para o mar não haveria nada de mal em me abordar, mas eu estava concentrado em uma leitura...

Então lembrei do livro que estava lendo “ Genética neoliberal”, onde a antropóloga Susan McKinnon faz uma análise desconstrutiva das ideologias capitalistas subjacentes às teorias supostamente científicas da psicologia evolutiva, que postulam basicamente que nosso comportamento é comandado por nossos gens, e tais genes tem como objetivo sobreviver, conquistar, competir.

Então, ali estava um jovem lutando pela sobrevivência, provavelmente ganhando comissão, em um trabalho temporário, precário, e mal pago em plena pseudo-pós-pandemia em um país de desemprego massivo e nenhuma política de proteção. Que diretriz seus genes deveriam tomar? Ser sensível a um cliente de comportamento fora da curva ou manter a diretriz de abordar todos os banhistas da praia? E eu? Devo levar em conta todas as precariedades  e dificuldades daquele jovem e ser mais educado e solícito, abrindo mão de minha leitura ou sustentar uma postura de enfrentamento e resistência ao sistema capitalista neoliberal, afinal, ambos somos trabalhadores e ambos estamos torrando sob o sol  e submetidos, cada qual com seu quinhão, a exploração do trabalho e apropriação da praia pública pelo dono do estabelecimento?

Aqui me subscrevo as ideias apresentadas por Vladimir Safatle no livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” quando ele diz que o pré-requisito para o sistema capitalista neoliberal funcional é um regime autoritário. No regime do passarinho Hegel me diz que o menino é obrigado a interromper minha leitura, e eu sou obrigado a recusar sorrindo e agradecido.

Não sei quanto a vocês, mas a expressão “ele está apenas fazendo seu trabalho” me lembra algo..

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

As peles que me habitam ou sobre a tatuagem (Por Fábio Dal Molin)


 

Sou um adepto da arte da tatuagem desde os 17 anos e já experimentei todos os possíveis sentidos e sensações de imprimir desenhos na carne. Minha primeira experiência foi impensada e intuitiva. Em 1992 eu tinha cabelos compridos e fazia parte da cultura Heavy Metal de Porto Alegre. Naquela época apenas punks e headbangers tinham tatuagens e conheci um sujeito que em pouco tempo virou meu melhor amigo. Ele era uma das poucas pessoas que tinham os braços cheios de tatoos, era muito inteligente, culto e sensível, não bebia nem fumava apesar de que seu visual na época parecia demonstrar o oposto. "O discurso que não era semblante", parafraseando Lacan no seu seminário 18, enfim, o que cconhecemos de uma pessoa às vezes é apenas nosso olhar (seminário 11) e a luz que reflete dela. O resto é embaixo da pele.
Meu amigo me levou ao estúdio do Frank Tatoo, um sujeito careca com roupas de couro, o estereótipo do tatuador oficial dos Hell 's Angels. Um cara grosseirão e espontâneo. Meu amigo foi lá para agendar uma sessão. Eu fiquei obcecado com aquilo. Naquela época os estúdios de tatuagem eram abertos e tinham vários catálogos espalhados. Peguei um deles e olhei as tatoos menores. Vi uma aranha bem pequena e perguntei o preço. Era algo tipo 50 reais. Esvaziei meus bolsos e fiz ali, na hora, em 20 minutos, sentindo a ´pior dor da minha vida, sem imaginar todas as consequencias, afinal para a maioria de nossas experiências somos como crianças que vivem no mundo da fantasia. No meu caso achava que era só pintar a pele e tudo terminava.... Sua majestade o bebê.
Foi a maior e mais radical experiência da minha vida, aos 17 anos experimentei a injunção, a fase fálica, eu me inscrevi no mundo dos cabeludos tatuados rebeldes, marinheiros, motoqueiros, músicos de banda. Eu era imortal. Minha sensação de poder aumentou quando uma menina apareceu no estúdio enquanto eu sofria as agulhadas e perguntou de valores e horários. Frank perguntou a idade dela (14). Então ele disse que menores de 18 precisavam de documento de identidade e a autorização dos pais. A menina foi embora meio decepcionada enquanto eu estava bem quieto e sorridente sendo desenhado aos 17 anos. Uma semana depois tive um problema de pele e cortei o cabelo... No mesmo dia peguei minha coleção de discos de vinil e vendi. Com o dinheiro fui a outro tatuador lendário, Marcos, e realizei um velho sonho: tatuar o anjo caído, o selo da gravadora Swann Song do Led Zeppelin, minha banda favorita. 3 horas de dor e sangue e em menos de duas semanas eu já tinha duas tatoos, que fizeram sutura do luto do cabelo comprido.
No filme "O livro de cabeceira" de Peter Greenaway, a personagem principal tem uma compulsão por pintura a tinta no corpo que a fazia reinscrever constantemente um ritual edipiano criado por seu pai. No fim do livro, após realizar o desejo de matar seu amante-pai-imaginário, a personagem entra no registro do mundo adulto gerando um filho, e suas pinturas transitórias são substituídas por tatuagens orientais tradicionais. Na cena final ela amamenta seu filho exibindo os braços "fechados", uma tradição japonesa de saturar cada centímetro de pele.
A tatuagem para mim representou uma marca.
É muito difícil explicar de fato o que é o processo, mas ele é absolutamente singular e idiossincratico, e representa muito mais do que desenhar na pele. Eu li poucos ensaios psicanalíticos sobre tatuagem, a maioria de pessoas que nunca experimentaram as agulhas elétricas e produziram textos teóricos, vagos, preconceituosos...A exceção é minha amiga e colega Heloisa Helena Marcon, que nos traz esse belo texto, É claro que ela também é uma adepta dessa nobre arte
https://appoa.org.br/uploads/arquivos/correio/correio182.pdf

Os melhores trabalhos sobre o assunto vem da antropologia, de estudos etnográfico sobre como as pessoas dão sentido aos seus desenhos, e como as culturas se modificam e também engendram novos sentidos. Quando fiz minhas primeiras tatoos eu as exibia como orgulho da rebeldia adolescente, minha mãe odiou, passou a me ver como um corpo estranho (isso talvez me tenha catapultado do Édipo), as pessoas me paravam na rua para me perguntar se eu não me arrependeria. Eu cultivava ódio e discriminação, mas também temor e admiração.
Nesses 29 anos já experimentei a rebeldia da adolescência quando Porto Alegre tinha apenas cinco tatuadores, e minhas duas primeiras foram sem luva e sem curativo..
Muita dor e sangue.
Eu voltei a me tatuar depois dos 30 e aí virou uma body art, já escolhi desenhos por sua beleza e história, mas também já me submeti a arte dos tatuadores
Hoje experimento a tatoo como um ritual de criação, recriação, dor, cura,.morte e ressurreição.
Freud, na sua "introdução ao narcisismo" trata da impossibilidade de nosso corpo ser experimentado sem a representação, sem esse olhar do Outro, sem esse eu que olha para si mesmo e em uma segunda instância se engendra na interface de ser olhado. Quando temos uma dor de barriga pensamos imediatamente na palavra dor e na palavra barriga e logo fantasiamos sobre gastrites ou gases. A tatuagem representa um tipo de trabalho sublimado e encarnado dessa construção de sentidos. Com os anos as tatoos vão circulando entre o real, o imaginário e o simbólico. Hoje eu as vejo como roupas inversas, que posso vestir ao desnudar e esconder ao vestir.
No japão os membros da Yakuza chergam a tatuar 100 por cento do corpo, e no cotidiano o mantém coberto de terno e gravata. Eu também posso fazer isso. Posso provocar no outro a fantasia de que minha pele é limpa e incólume, e desnudá-la aos poucos. Assim é com todo o resto, não?
A pele é nosso órgão mais profundo, diz Paul Valery.

Desde o momento que a tatoo é pensada e imaginada até a última agulhadas, nosso corpo nunca mais será o mesmo, mais do que uma prótese, a tatuagem inaugura um novo esquema corporal.

Na última sexta fiz minha décima sexta tatuagem minha primeira no estilo old school ( que, 40 anos atrás não existia porque simplesmente era "a tatuagem") e fui pesquisar as últimas tendências no processo de cicatrização, e para minha surpresa a tatuagem ainda permanece um mistério. Não é nem uma ferida nem uma assadura e a bula da pomada diz " siga as instruções do tatuador ".

Agora posso dar dicas de como proporcionar uma boa experiência de cicatrização.
Em primeiro lugar reserve um turno para fazer a tatoo. Um bom tatuador não irá simplesmente desenhar no seu corpo. Há uma ciência específica de forma, sombra, ângulo e transposição do desenho para a pele. O tatuador experiente injeta tinta antecipando seus efeitos futuros até mesmo depois da cicatrização.
Também recomendo fazer na sexta ou fim de semana e se programar para descansar,.porque a tatoo incha, sangra dói,.demora, é cansativo. Eu não recomendo analgésicos . Como diz Tyler Durden: esse é o grande momento da sua vida,.não desperdice.
Além disso a dor aumenta a inexplicável sensação de prazer de ver o " trampo" pronto, tinindo,cheio de cor e que será o resto da vida da nossa pele.
Nas minhas primeiras tatoos ganhei um pedaço de papel escrito " vasenol" e só.
Anos depois estranhei o curativo feito com insufilm e o uso de pomadas como bepantol.
Mas minha última pesquisa me fez experimentar uma técnica definitiva e a tatoo está cicatrizando bem rápido. Ah, e o bepantol não estraga a tatoo nem remove pigmento. Isso é lenda urbana de quem não cuidou direito ou foi a um tatuador inexperiente ou que usou materiais inadequados. Muitas vezes os leigos se deslumbram com qualquer um que compra uma máquina e sai fazendo decalques.
O Bepantol ou bepantriz é uma pomada para assadura. A tatuagem recem feita é algo entre um esfolão e uma assadura. Parafraseando Lacan, a tatoo é lituraterra, é traço unário, é um sulco na pele, é o espaço entre, a lamela....
A agulha injeta tinta na segunda camada da pele e remove a primeira,.mas rompe apenas a circulação mais superficial. Por isso as vezes nem sangra.
Então é fundamental que a tatoo recém feita seja apenas lavada com sabão neutro ou bactericida e envolvida em filme plástico três vezes por dia para evitar infecção e também para que os próprios fluidos corporais a hidratem. Plástico também protege dos atritos
Depois de 3 a cinco dias o corpo já cria uma camada de proteção ( como a das queimaduras solares) e então é a hora de usar e abusar da pomada cicatrizante até a casca cair toda. Isso irá manter a pele hidratada e renovada . Depois da casca cair e a pele nova se consolidar então é a hora de usar um bom hidratante e evitar insolação por pelo menos um mes..
A dica de sempre é: economize dinheiro e tenha bom gosto, tatoos pequenas não podem ter muitos detalhes e tatoos grandes demoram e precisam ser bem pensadas.
A trilogia é : dói, é caro e não sai.
Fique longe do amigo que quer te tatuar de graça. A pele é um bem durável.
Olhe o portfólio de seu tatuador e procure ver se ele já participou de convenções. Eu já me tatuei em duas e uma ganhou prêmio.
É do nosso corpo que falamos
A foto acima é de de minha última tatoo, de autoria e agulhadas do Eduardo Reis, meu velho parceiro, da Tatuaria Reis, na Coronel Genuíno 201, Centro Histórico.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Ninguém sabe que eu estou aqui" Gaspar Antillo, 2020





Fabio Dal Molin
Memo Garrido (Jorge Garcia) chegou a me enganar "Parece o cara do Lost" pensei ao assistir de coração apertado esse pequeno e denso filme Chileno de belissima fotografia e história original, Memo é um personagem tão grande em tamanho e em eloqüencia subjetiva que Jorge pareceu pequenininho e acabou realizando o título do filme em meu ponto cego.
A história trata dos percursos e percalços da aventura heróica frente a nossa constituição como sujeitos da fala (no caso do canto) frente aos impasses da mefamorfose paterna. Memo é um menino gordinho e expressivo com uma voz de anjo que, para que seu pai pudesse lucrar com seu talento, foi obrigado a esconder seu corpo e a emprestar sua voz a outra criança cuja aparência se encaixasse mais no mainstream da infância prodígio. O pai de de Memo opera uma intrusão Real ao separar quase cirurgicamente seu corpo (condenado ao ostracismo dos bastidores) e sua voz ( arremetida ao mundo do grande Outro do universo Pop). A primeira tentativa de Memo de sair dessa posição aniquiladora se dá por uma passagem ao violenta, o que acarraeta em uma punição severa que separa mais ainda de si mesmo e o condena ao ostracismo em uma ilha sem energia elétrica, acesso por terra ou ao mínimo convívio social
. Impedido de falar, Memo torna-se um adulto sem fala, esconde a si e a seu canto em algum canto do mundo cuidando de ovelhas e invadindo casas de veraneio vazias onde simula uma inscrição na vida "normal" sendo criado por um tio amoroso e paciencioso que ocupa a importante função de pai imaginário .
A partir de uma nova passagem ao ato onde seu tio tem uma parte do corpo obliterada e é forçado a uma ausência, uma outra figura, uma mulher , amiga, ouvinte, olhante, convida amorosamente Memo a sair de sua posição de ostracismo e experimentar a angústia do retorno dessa intrusão do real, seu pai retorna repentinamente e com ele toda o Real saturnino, impositor, castrador. Contudo, a força pulsional da voz e do amor faz furo nesse real, rompe essa cadeia de repetição, e é canalizada por algo de um olhar que devolve a Memo sua própria imagem invertida e revertida e o faz superar esse pai Real destruidor e brotar como sujeito dono de sua própria voz e de sua própria existência.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

O Brasil e a Necro-Lógica na crise do COVID19



Bolsonaro é uma criatura atavica, mas quem puxa as cordinhas desse brinquedo assassino é mortalmente genial, e tem lógica. 
É uma necro-logica
Alguém que está lendo esse texto já morreu e. Um acidente de trânsito?
Sim, a pergunta é absurda.
Mas do que temos mais medo? Morrer ou sofrer um acidente de trânsito?
Morrer, óbvio (palavra da moda no netflix)
Mas o que nos incomoda mais? Quantos faróis quebrados ou parachoques amassados já enfrentamos e quanto dinheiro e  tempo gastamos .
Mas morrer não nos incomoda, porque estamos vivos.
Então o que nos molesta mais, morrer ou ficar pobre e desempregado? A segunda opção,  é claro. É a lógica da série Law  and  order SVU: vítimas de crimes sexuais sofrem, as de homicídio não...
Então a estratégia de Bolsonaro  é uma entre tantas que ele tirou da esquerda: dizer que se preocupa com os pobres e que morrem mais pessoas em acidentes de trânsito, tiroteios ou problemas cardíacos, ataca a mídia ( Globo) e defende a liberdade de manifestação na rua.
É claro que nem ele nem seus seguidores ( e de certa forma nenhum de nós hoje ) está preocupado com as milhares de pessoas que morrem no Brasil todo  ano, mas sabem que perto delas  o Corona não é nada. É uma verdade estatística . Vai  passar, mas a economia neoliberal que já estava em frangalhos não vai se restaurar e vamos seguir no eterno ciclo de reformas  e ataques ao serviço público.
Para Bolsonaro e  seus seguidores,  60 mil pobres mortos por tiroteio todo mês é uma estatística.  Um shopping falido é uma tragédia.
Opa essa frase não uma paráfrase do Stalin ?
É , pois é.
Da mesma forma que a facada , a coçadinha no nariz foi no momento certo e planejado .