Não fuja da luta, covarde

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Empate

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Sobre a experiência cinematográfica e sua radicalidade


Não sou nenhum especializado em cinema, e tampouco posso receber a alcunha de cinéfilo. Há muitos anos, quando estive em Buenos Aires, conheci uma garota que era cinéfila. Ela tinha por hábito, aos fins de semana, participar de imersões de 48 horas dentro de salas vendo películas de 08 ou 09 horas e debatendo nos intervalos para o café ou baseado.Ela retribuiu a visita e veio a Porto Alegre passar uma semana. Na despedida,  ela deixou um papel com uma lista, que anotou em cinco minutos uma lista com uns 20 diretores que ela lembrava de cabeça,  quase como um tema de casa. Isso é ser cinéfilo. Isso faz uns 12 ou 13 anos, nunca mais vi a garota, e estou terminando agora de completar a tal lista.
  No entanto, como portoalegrense que viveu intensamente os anos 80 e os anos 90 em nossa capital, quando ainda existiam “cinemas de calçada” baratos e perto de casa,  os filmes bons  permaneciam em cartaz por longos períodos e realmente ir ao cinema era um habito social, um bom programa para a família e os amigos. Afinal, com a comercialização massiva dos DVDs e a explosão dos downloads de títulos que às vezes sequer chegam as salas, este hábito converteu-se em algo caseiro e solitário.
Eu acho que muitos hábitos passaram por esta mudança. Lembro da época dos discos de vinil, quando íamos na loja e ficávamos horas passando os dedos nos bolachões, até achar uma raridade, ou mesmo um disco novo, aí chamávamos os amigos para escutar e ouvíamos todas as faixas do LP...E hoje baixamos discografias inteiras em minutos e ouvimos no carro ou nos mp3 players com fones de ouvido.
Desta forma, não sou cinéfilo no sentido estrito, mas talvez no latu, ou seja, sou um amigo ou um amante da chamada sétima arte, e fico  intrigado toda vez que tenho esta experiência fílmica, imaginando a passagem do trem filmado pelos irmãos Lumiere de maneira quase científica até as abstrações dramáticas e estéticas de Stanley Kubrick, David Cronemberg, David Linch e outros. Que fantástica magia esta de filmar por horas e horas, construir cenários, efeitos especiais, continuidades, roteiros, montar tudo isso, editar e produzir uma sequência temporal ilusória que irá aterrissar em nossas mentes e engendrar mundos heterogêneos.
Nas ultimas quatro semanas vi mais de 30 filmes, e tenho a impressão que meus olhos estão cada dia mais treinados, apurados, sensíveis. Isso mudou muito minha percepção e meus esquemas cognitivos.Vi documentários, filmes coreanos, japoneses, americanos alternativos, espanhóis, argentinos, poloneses, tchecos, alemães, suíços.
É impressionante como, se dependermos das salas de cinema, da TV e das locadoras nossa experiência cinematográfica é míope.O cinema "alternativo"nos obriga a pensar em elementos heterogêneos dos filmes: luz, sombra, fotografia, roteiro, tempo, expressão.
O cinema comercial é exclusivamente centrado na dramaticidade e no roteiro previsível, geralmente dividido em três partes. Vi um filme português, "No quarto da Vanda" filmado com Mini DV no qual o diretor praticamente abre mão do roteiro.Não "acontece nada no filme”. Em um subúrbio pobre de Lisboa vivem pessoas que conversam,  vivem, convivem, sem trilha sonora, sem clímax, sem início nem fim. O espectador acostumado ao roteiro diria que “é sem pé nem cabeça”. Seguimos a metáfora: o corpo humano é feito de bilhões de células. Po que pensar no pé e na cabeça... E a meus amigos professores, um semestre letivo é composto de milhares de minutos, segundos, horas... E tudo se resume a avaliação, aula, didática...
É claro que Win Wenders, em “O Céu de Lisboa” discute a impossibilidade do cinema “puro”, mesmo o prosaico trem dos irmãos Lumiére possui os limites angulares, focais, da posição da câmera de da própria limitação de filmar aquilo e não o resto do Universo. Mas no cinema, como na educação, pode-se apostar mais no espectador ou no aluno ou no diretor, no método, no professor.
Então percebo que boa parte do cinema  tem a intenção pura e simples de conduzir o espectador a um caminho seguro, asfaltado e estéril.
Lars Von Trier, no filme “O Anticristo” mostra a floresta como o lugar onde o caos reina. E o caos verdadeiro não é desordem, e sim, ordens múltiplas, combinações caleidoscópicas de sentido. David Linch segue uma linha ainda mais radical, pois tem a intenção de colocar o espectador  na perspectiva de quem sonha, e no sonho predomina o inconsciente. Ninguém controla o que faz no sonho, o que vai sonhar ou quando vai acordar. É quando somos acordados, ou seja, outra pessoa, outra perspectiva, que monta o quebra-cabeça onírico.
David Linch e Lars Von Trier nos ensinam a apreciar o cinema como quem aprecia uma pintura, ou uma sinfonia atonal.Nossa visão tradicional do cinema é muito estruturalista e estruturada, sempre queremos saber o que há no fim, e esquecemos de todo resto. Muitas pessoas não gostam de ver filmes mais de uma vez porque prestam atenção apenas no enredo, não pensam em cenas, cores, signos.
Os melhores filmes precisam sempre ser vistos mais de uma duas, dez, infinitas vezes  e tal experiência precisa durar, e não é assim com as músicas, a comida, as pessoas queridas?
Assim como é sempre o espectador que constrói o filme, é o aluno quem aprende sozinho.
Mesmo o uso didático do cinema é algo encarado por muitos com limitações. Em geral o professor preocupa-se com a interpretação pura e simples da maneira como o filme discute determinada questão e negligencia a experiência sensível em si ou os sentidos horizontais  riquíssimos de significações presentes na fotografia, na trilha sonora ou dos códigos abertos que o diretor apresenta. Eu considero a interrogação de “como” um filme foi feito uma ferramenta pedagógica poderosa no aprendizado de metodologia da pesquisa. Afinal, assim como o dado científico, uma cena de cinema é o resultado de composições metodológicas e interpretativas incrivelmente complexas, e o espírito científico é justamente aquele que interroga sempre como o conhecimento é obtido ou produzido.
Minha principal meditação nestes longos dias de imersão é que  assim como o cinema pode ser ao mesmo tempo diversão e pensamento, a  educação e a ciência seguem o mesmo caminho.