Não fuja da luta, covarde

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Empate

terça-feira, 21 de agosto de 2018

As três mortes de Amanda Curran




No seminário "Cinema, desejo e olhar com Stanley Kubrik foi exibido o filme "De Olhos bem fechados"  e fiz algumas compilações de fotogramas  que denotam elementos estruturais do filme, o que em semiótica chamamos de significantes: cenas em que aparece a cor vermelha, enquadramentos simétricos, trajetória de personagens. Eu postei essas fotos na comunidade do LEXPARTE no Facebook.  A rede social censurou as fotos em que aparecem mamilos e me bloqueou por três dias.
Eis as fotos:





sábado, 5 de maio de 2018

Pausa para Dostoievski



Alunos que tem boa cultura certamente tem mais facilidade com o resto. Quer dizer,uma planta pode crescer só com terra e água, mas com um bom adubo orgânico ela fica bem maior e mais viçosa.Guattari chama isso de “universos de referência”, linhas de fuga, espaços nos quais podemos colocar em perspectiva os conhecimentos teóricos e técnicos e tornar nossa experiência no mundo mais complexa e heterogênea. Dentro das minhas atividades docentes, e enfim, também daquelas que propus durante a greve, e outras tantas que estão ocorrendo no acampamento estudantil, boa parte envolve a exibição de filmes ou a leitura de alguns clássicos da literatura. Pode-se perceber que, no mundo acadêmico, um grande abismo surge entre o operário trabalhador acadêmico, e o chamado pensador intelectual. Nós, doutores, os cérebros mais treinados e capacitados da terra (?), paradoxalmente estamos perdendo nossa capacidade de pensar, pela exigência cada vez maior de produção numérica e burocrática pautada em prazos, e também pela especialização.Creio que isso é um ponto de pauta importante a ser discutido em tempos revolucionários de greve...
O operário-padrão do conhecimento deve ter seu intelecto restrito ao seu escopo de pesquisa. O resto é ócio.
Pois eu não concordo com isso. Minha idéia de educação é complexa, e principalmente na minha área, a Psicologia, quanto mais Universos e modos diferentes de pensar, mais o pensamento e as relações humanas adquirem a capacidade de se reinventar. Pois falemos de Dostoievski.
Fiodor Dostoievski (1821-1.881), escritor russo, autor de obras como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, O Idiota, ´é considerado um dos maiores expoentes da literatura mundial ao lado de Shakespeare, Proust, Tolstoi entre outros. Sugiro, para começar, "Notas do Subsolo" e "Memórias da casa dos Mortos" (que estou lendo agora). São baratinhos e fáceis de ler.
"Notas do Subsolo", ou dependendo do tradutor, "Devaneios do subterrâneo", "Notas do subterrâneo e por aí vai", doravante o título, me puxou para o andar de baixo, ou pelo menos mostrou o chão que está acima de mim.

O filósofo Mikhail Bakhtin construiu uma grande obra inspirada no escritor russo, considerando seus romances polifônicos e dialógicos, polifônicos pelo fato de o escritor ser uma espécie de consciência das consciências de seus personagens, que, segundo Bakhtin, adquirem independência no discurso... Dialógicos pelo fato de os personagens, alguns formadores de um discurso próprio, teórico, e que produz fissuras nos outros personagens´, e no caso do "Notas...', no próprio leitor. O livro começa com um diálogo direto do personagem, que não possui nome, com o próprio leitor, onde ele apresenta "o subsolo", ou seja, o lugar de ode ele se posiciona, sua visão de mundo, seu estado de espírito. "Sou um homem doente, sou mau", é a primeira frase do texto, e prossegue um diálogo cuja tônica é habitar o subsolo, o subterrâneo, o lugar do discurso além da moral, em que o personagem se mostra como herói como questionador da humanidade da hipocrisia, mas ao mesmo tempo se acovarda... Ele chega a dizer "Pressupomos que o homem seja inteligente, pois se ele for idiota, quem mais consideraremos inteligente?".Define o homem como um ser "bípede e ingrato", assume a postura de subsolo ainda que no final, diga que não acredita em UMA palavra que escreveu, e, na conclusão escreva as incríveis palavras: “é melhor não fazer nada! È melhor a inércia consciente!Pois, então viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal até a minha última gota de fel, nas condições em que o vejo, não quero ser ele"...
Dostoievski é impressionante. Suas narrativas são simples, porém descrevem personagens complexos e que tem vida própria.
Em “Memórias da Casa dos Mortos”, a história é contada por um personagem que lê um diário de um detento em uma prisão na Sibéria.Neste livro dentro do livro, é descrita a rotina da cadeia, com pormenores sensíveis e cotidianos.Em meio a esse cotidiano, aparecem as vidas, pensamentos, morais, sentimentos e conflitos de cada personagem, como se eles tivessem vida. Em Dostoievski, os personagens assumem discursos e falas que são independentes da narrativa e do narrador, como se fossem vivos. Cada idiossincrasia da prisão é trabalhada com detalhes e sob a perspectiva da multiplicidade subjetiva e heterogênea dos detentos e seus modos de funcionar, o que dá ao ambiente carcerário uma idéia de multiverso: o verão, o inverno, as festas, os conflitos, as penas e seus múltiplos delitos e suas motivações, castigos, o hospital...
Sendo o livro dentro de outro, ainda há mais histórias dentro de histórias e o leitor é habilmente conduzido a dialogar e quase nos esquecemos que apenas uma pessoa as escreveu, ou, desta maneira, abre-se a possibilidade ao leitor de construir este diálogo.
E, quem sabe, não podemos usar Dostoievski como metáfora para nossos fazeres pedagógicos, e, em meio a prisões curriculares e suas rotinas sufocantes deixemos as vozes de nossos alunos dialogarem e possamos nos perder em nossas polifonias?

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Manual precário e (despretensioso) sobre como analisar e escrever sobre cinema.



  O cinema inaugura o século XX como sua arte mais representativa, por ser um fenômeno de massa e por poder integrar em si todas as outras artes: pintura, música, poesia, literatura, escultura, além, é claro de sua importante contribuição para as ciências pelos seus documentários e possibilidades de registro e transmissão nunca antes imaginados anteriormente. Para além disso, o cinema se constituiu também como forma de arte que produziu suas próprias linguagens e, desde sua criação foi objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento.O que interessa aqui são duas ciências muito intimamente ligadas entre si que também nasceram na aurora do século XX e que apresentaram nos últimos anos grandes contribuições aos estudos cinematográficos como ferramentas de análise para minhas pesquisas, a saber, a semiótica e a psicanálise.Pretendo aqui esboçar algumas questões importantes para quem se interessa pelo tema e quer iniciar a difícil mas prazerosa tarefa de assistir filmes e produzir algum pensamento escrito sobre eles. Aqui vão algumas considerações metodológicas , ontológicas e epistemológicas sobre a pesquisa em cinema que podem servir para a pesquisa em geral também porque há temas que são universais: autoria, método, empirismo, relações entre teoria e prática e considerações éticas, estéticas e políticas do desejo de pesquisar. Para tanto, começamos com a pergunta fundamental: quem é o autor? Aparentemente essa questão é simples, “ora é quem está aqui sentado escrevendo o texto”, mas quando olharmos mais de perto os processos de subjetivação e suas vicissitudes, a pergunta fica mais complexa.

1-Ser autor
Eu já ouvi mais de uma vez alunos da Universidade dizerem que seus professores, quando pedem trabalhos ou ensinam metodologia, costumam dar muita ênfase aos aspectos formais e normativos e os incentivam a não emitirem as suas “opiniões”, chegando, inclusive a exigir um certo número de autores citados por parágrafo do texto (tornando a citação algo obrigatório, quase preexistente a escrita). Penso que tal postura é um simulacro (ou seja, uma forma deturpada imperfeita e mal acabada) da verdadeira e importantíssima função das normas em textos “acadêmicos” ou não que é dar fluidez comunicativa ao texto e ( quando isso não for o objetivo) não confundir ou enganar o leitor. Quando extraímos uma ideia do livro de outro autor (vamos dar como exemplo Freud), se quisermos reproduzir exatamente o que ele disse, devermos indicar com algum destaque como se essa voz fosse de um gravador (citação literal) ou o resumo desta ideia com nossas “próprias palavras” sempre colocando o nome de quem disse, e aqui considero alguns autores como pessoas que se esforçaram muito para produzir conhecimento e não seria justo nos apropriarmos dele assim, além do mais é importante informar o leitor onde ele pode achar essa ideia e conhecer mais intimamente o autor, e por isso também devemos cuidar do datamento das obras. Freud morreu em 1939 mas suas obras estão até hoje sendo reeditadas, logo,se colocarmos a data original apenas o leitor dificilmente terá acesso a edição original e se colocarmos a data de 2012, por exemplo, omitiríamos importantes informações sobre o contexto histórico, epistemológico e até mesmo biográfico no qual Freud produziu os conceitos usados. Por isso, escrever um texto com as normas e citar corretamente um autor não é uma mera formalidade e sim parte fundamental e integrante do próprio conteúdo do texto em si. Mas atenção: essa regra vale apenas para quando sabemos explicitamente qual autor estamos citando, pois, afinal, uma das grandes discussões que autores como Michel Foucault, Deleuze & Guattari, e o supracitado Michel Schneider se debruçaram nos últimos tempos é justamente “o que é um autor”. Quando escrevemos um texto somos obrigados a recorrer a uma linguagem estruturada social e culturalmente, usando palavras que possuem uma história e conceitos cuja propriedade às vezes se perde no tempo e faz parte já constituinte do domínio linguageiro. Michel Schneider, na obra “Ladrões de palavras” provoca um divertido movimento conceitual ontológico: todos os textos do mundo foram produzidos por um único autor chamado humanidade ou cada texto, por mais repleto de roubos de ideias que ele contenha, a pessoa que escreve, compila, organiza e produz um texto sempre é um autor singular.
No caso da ideia mofada da academia que nos obriga por leis tácitas a considerar um autor como autoridade e citá-lo obrigatoriamente ou fazer exaustivas e enfadonhas revisões bibliográficas o filósofo francês Bruno Latour produziu uma imagem exemplar: quando um autor cita muitas “autoridades” no seu texto isso equivale a convocar uma gangue para bater no leitor solitário que precisa enfrentar uma multidão para chegar a compreender uma ideia ou um achado científico.
Veremos a seguir que a questão da autoria e da influência é um dos motivos primordiais de desenvolvermos estratégias metodológicas amparados na semiótica e na linguística na análise de obras cinematográficas, pois um cineasta, tal qual o autor de um texto, também sofre de influências e lança mão de elementos intertextuais na sua obra, porém na maioria das vezes isso não é colocado em normas acadêmicas, logo, um dos trabalhos do analista de cinema é garimpar referências, citações e influências usadas pelo diretor e os roteiristas e como elas podem compor também uma obra singular. Mas em primeiro lugar, vamos pensar um pouquinho sobre a gênese da pesquisa cinematográfica.

2-Deixar-se afetar
Afinal, o que nos convoca a pesquisar ou escrever sobre um tema? Voltando ao item anterior, eu tenho uma estimativa de que nesses mais de dez anos de docência eu possivelmente já trabalhei com uns dois mil alunos e tenho pesadelos quando imagino como seria se eu fosse um professor que os obrigasse a respeitar normas por autoridade ou fazer imensas revisões bibliográficas com o mínimo de autoria. Pelo contrário, minha interrogação é sempre a mesma: vocês por acaso pensam no leitor quando escrevem um trabalho? Será que os trabalhos acadêmicos precisam obedecer a sina do conceito de trabalho na língua portuguesa católica: um instrumento de tortura , sacrifício e punição medieval chamado “tripalium”?E eu, professor, devo ser obrigado a ler esse verdadeiro exército de instrumentos de tortura?
Toda vez que peço a meus alunos que escrevam algo, eu faço a advertência: eu gosto de ler bons textos, e bons textos são aqueles que me fazem rir, chorar, ou que me provoquem questões inusitadas, me surpreendam ou mostrem uma abordagem original do assunto. A única regra de avaliação? Que os trabalhos mostrem realmente que os alunos acompanharam as discussões em aula, que aproveitaram o tempo e o espaço caríssimos da universidade, e que, enfim, alguma coisa os afetou, produziu algo, nem que seja raiva ou tédio;
Assim também funciona com a pesquisa, e duplamente com a pesquisa em cinema: o cinema é algo que produz desejo, nos convoca nos arrebata. Eu vou ao cinema desde pequeno, na época dos cinemas de bairro ou calçada naquela época os filmes em cartaz sempre traziam algo para o debate ou a simples contemplação estética dos efeitos especiais, da tela gigante do som dolby stereo recheado de graves: efeitos especiais inusitados, histórias emocionantes, comédias, filmes chamados “cult”, violência extrema, pura diversão. Freud escreveu um texto fundamental sobre o “estranho” ou "infamiliar" ( das unheimliche),, o algo mais da experiência humana que não cabe na mera razão, algo que é do desejo em si. Mais adiante trataremos as questões da semiótica , mas adianto aqui que um de seus grandes autores, Charles Alexander Peirce, coloca que os signos, os sinais, as palavras , as imagens, as músicas, a poesia, são nosso primeiro nível de experiência com o mundo e eles representam um impacto uma marca, sendo apenas nas próximas camadas da experiência que poderemos passar aos próximos componentes analíticos, o significante e o significado. Eu jamais esquecerei da primeira vez que assisti “Laranja mecânica”, da emoção que senti com a trilha sonora e do quanto fui perturbado pela violência e pela crueldade, mas também pelos ângulos de câmera, a ironia, perfeição da fotografia e do roteiro, o que me fez discuti-lo em inúmeras rodas de amigos, ou de escrever um capítulo de minha tese sobre ele ou de utilizá-lo como material didático em várias de minhas disciplinas e sempre sentir o mesmo prazer em cada audição dos primeiros acordes de Walter Carlos entre os olhos azuis de Alex. É assim que começa.

3-Fenomenologia, semiótica e psicanálise
Diz o biólogo-fenomenólogo chileno Humberto Maturana, em sua “Ontologia da Realidade” que tudo o que é dito é dito por alguém”, frase que sintetiza a fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty e que Lacan associou sabiamente a ideia de realidade psíquica de Freud, afinal, nosso mundo é um “mundo vivido”, não temos acesso “direto” às coisas do mundo, no mínimo nossas estruturas cognitivas precisam estar preparadas, pois, sem isso, toda vez que víssemos uma pessoa desconhecida veríamos uma luz branca que iria tomando forma. Segundo Maturana, aquilo que apreendemos do mundo é apenas 20%, os 80 restantes foram formados desde o início de nosso desenvolvimento: noções de forma, de profundidade, presença e ausência, figura humana... a própria ideia do que é o mundo. Com o cinema é assim: cinema é ilusão e crença, acreditamos que o super -homem voa na hora que somos arrebatados pelo filme e poucos de nós pensa nos efeitos especiais, do contrário a ficção não teria graça nenhuma. E de que forma nosso ser no mundo é capaz de incorporar este universo e organizar esta experiência? Os Signos, a linguagem, as palavras, conceitos, narrativas, imagens mentais, mitos, aquilo que Freud chama de representações representativas. A psicanálise nasce de representações, Freud e Breuer estudaram o fenômeno da histeria a partir de braços, paralisados, cegueiras, delírios ou alucinações que, a partir de cadeias associativas, representavam ideias bastantes distintas das manifestas, estavam ali “escondidas” e “à mostra”ao mesmo tempo. A palavra dita, o ato falho, o chiste, a narrativa do sonho são ideias que estão no lugar de outras ideias. Assim o grande pesquisador semiótico e escritor Umberto Eco define o signo: é uma mentira, é algo que está no lugar de outro. A palavra cadeira é utilizada como instrumento mental para nos referirmos a um objeto mesmo estando a quilômetros de sua presença “concreta”.
O grande inventor da ciência semiótica e linguística foi Ferdinand de Saussure, cuja obra chegou até nós pela compilação de suas aulas por dois colegas e um aluno. È Saussure quem postula a principal teoria dicotômica do signo: o signo é composto de uma imagem icônica chamada significante e de uma unidade de sentido inscrita na linguagem chamada significado. A palavra cachorro é um signo composto por suas letras, morfemas e fonemas “cachorro” e quando a ouvimos ou lemos estamos inseridos em uma rede simbólica que nos conduz ao animal, ou a alguma ofensa ou a alguém que nos “passa o cachorro” o que significa um engodo na gíria gaúcha. A sacação de Saussure é singela em um exemplo: uma ovelha sabe que uma pessoa está falando, o som das palavras chega ao seu ouvido mas ela não é capaz de entender, pela sua incapacidade cerebral que a impossibilita de estra inserida na rede cultural dos significados. Outro exemplo é o papagaio, que aparentemente reproduz a palavra humana mas não a compreende. Ou de determinadas patologias causadas por lesões em áreas do cérebro relativas a linguagem nas quais as pessoas reconhecem as palavras mais não conseguem acessar seu sentido. O signo, para Saussure e sucedâneos, é uma bifurcação. Aqui nasce a linguistica estruturalista, os signos possuem significantes e significados que comportam uma experiência com o mundo atravessada por uma rede estruturada simbólica, cultural, social. Mas cuidado: dizer que a rede é estruturada não quer dizer que ela seja rígida. As palavras mudam de sentido ao longo do tempo, tanto no eixo sintagmático (os usos locais, singulares, regionais) ou paradigmáticos ( as mudanças históricas e sociais da língua). Para Saussure a língua é uma coisa viva.
Desta maneira, quando um cineasta pensa um roteiro, os atores, os cenários, os objetos, ângulos de câmera, transições, cenas, diálogos, e toda a composição do filme, o que ele está fazendo é trabalhar com um processo de significação cujo objetivo (ou um deles) é, através dos signos,inserir o espectador em uma rede simbólica e este pode estar mais ou menos acoplado. O trabalho de pesquisa em cinema envolve também a captura dos signos e a exploração dos diferentes sentidos daquilo que está na tela, que pode conter questões pessoais, sociais, históricas, subjetivas, filosóficas, etc que vão emergir no encontro da obra ( na sala de projeção na qual todo o aparato que produziu o filme está ausente) e a vivência do espectador. Um exemplo interessante é o filme 2001, cujo roteiro foi produzido conjuntamente por Stanley Kubrick e Arthur C. Clark. Na obra escrita temos acesso a todas os signos e seus significados, já na obra cinematográfica Kubrick trabalha com pouco texto e muitos signos codificados. O enigmático monolito e sua origem não são bem explicados no filme, ,mas quem ler o livro terá acesso ao seu significado bem restrito rede simbólica do roteiro: um artefato alienígena com um objetivo bem preciso.


4- Linguistica e psicanálise:Significantes, significados, simbólico e aí vai o método
Durante muitos anos participei de acalorados debates a respeito dos mistérios envolvendo vários elementos de “2001”, desde o significado do monolito até a profusão caótica de imagens e viagens espaciais da clássica sequencia final, e sempre as discussões eram longas e encerravam com um gosto agradável de “quero mais”, uma deliciosa incompletude. Então, há pouco mais de um ano, eu resolvi finalmente ler o livro, e a sensação de saciedade ao saber o “significado” de tudo aquilo me provocou uma certa náusea, uma sensação de ter sido reprimido, violentado. É disso que Lacan fala no seu seminário sobre a Angústia: ela não vem da perda do objeto e sim da queda deste e do encontro com o objeto real irrepresentado.
Jacques Lacan, principalmente na primeira metade dos seminários dedicou-se dar grande (e fundamental) ênfase ao fato de que Freud concebeu os principais conceitos e métodos da psicanálise a partir da FALA de seus pacientes, e é a fala, e somente ela, o material de trabalho a partir do qual temos acesso aos sintomas, aos atos falhos, chistes, delírios, alucinações e até mesmo ao sonho, afinal, todo sonho na análise é um sonho contado. Ora, como a nossa ferramenta de trabalho é a fala e o temos acesso ao inconsciente pela via da representação, nada mais adequado do que trazer a linguística e a semiótica para a turma da psicanálise, ou ao contrário. Contudo, um pequeno problema se fez presente: o inconsciente, apesar de estar ligado às representações culturais, na vida do sujeito em situação de análise, acaba por constituir uma rede linguística com características próprias, instáveis, caóticas, sujeitas às singularidades do divã e da escuta. Aqui o binarismo imediato do significante que oculta um significado simples é substituído pela escuta singular das homofonias, condensações e deslocamentos. Quando um paciente diz “Cachorro”, o analista pode pensar em um momento no animal, mas o sujeito pode estar ligado a uma trama subjetiva inconsciente e a escuta pode se direcionar para “cai, choro”, é o desejo inconsciente rompendo as redes linguísticas e as singularizando de maneira radical.
Aqui então reside uma possibilidade de método de análise e pesquisa cinematográfica baseado na linguística e suas bifurcações com a psicanálise, a partir de alguns passos ( a palavra Methodo significa caminho)

1- Arrebatamento (SIGNO). Aqui trazemos a descrição do filme e tudo aquilo que ele nos provoca.
2-Significante- os elementos perceptíveis e estruturantes do filme que são percebidos no arrebatamento: frases, palavras, roteiro, atores, cenas, música etc. Aqui trazemos vemos um monolito ocupando uma posição importante no filme
3- Significado: o que podemos extrair disso a partir dos elementos presentes na cultura geral, ou na cinematográfica, nas ciências humanas ou quaisquer outros universos de referência que nos levem a recolocar a experiência vivida do cinema em experiência reflexiva, ou teoria.Aqui buscamos no livro o significado de monolito em 2001.
4- A bifurcação-aqui também podemos acrescentar elementos singulares e subjetivos da experiência, aqui podemos pensar, imaginar e produzir infinitos sentidos para o monolito, ou nos contentarmos com nenhum.Aqui está o significante de Lacan.
È isso.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

The leftovers e o arrebatamento da realidade ou acho que vou deixar o mistério rolar



Todo mundo está se perguntando como e de onde todos vieram
Todos estão preocupados em saber para onde irão quando tudo acabar
Mas ninguém sabe ao certo
Então para mim dá tudo no mesmo
Acho que vou deixar o mistério rolar
Alguns dizem que quando você morre é para sempre
Outros que você vai voltar
Alguns dizem que descansará nos braços do salvador
Se não tiver andado em caminhos pecaminosos
Outros que eles voltarão ao jardim
Cheio de cenouras e ervilhas deliciosas
Acho que vou deixar o mistério rolar

Música de abertura da segunda temporada

14 de outubro, 140 milhões de pessoas sumiram e ninguém sabe para onde, um feto desaparece da ecografia, um policial sofre de sonambulismo e seu pai ouve vozes e é internado em um hospício, milhares de pessoas abandonam a família passam a vestir-se de branco, fumar compulsivamente e param de falar. Um homem passa a caçar cachorros e em uma cidade inteira do Texas que não perdeu nenhum habitante exige pulseira para seus visitantes pessoas vêem o futuro, ressuscitam dos mortos. Pessoas lutam para esquecer e lutam para lembrar e em algum lugar entre a Tasmânia e a Austrália um assassino que diz ser Deus lê seu livro em meio a orgia de adoradores de leões. Subitamente o ator da série “primo cruzado” aparece na trama no papel dele mesmo.O Deus assassino é devorado por um leão. O policial que sofre de insônia morre e ressuscita duas vezes e o mundo dos mortos é visto como um grande hotel onde ele tem que cumprir missões e na segunda ressurreição ele canta no karaokê a música de Simon e Garfunkel Homeward Bound. A morte é vista como um sonho.
Eu gostaria de começar meu texto sobre a série “The leftovers” com um questionamento sobre a realidade que vivemos, ou melhor, vivenciamos. Na série exibida pela HBO, há uma referência explícita a um fenômeno bíblico chamado “O grande arrebatamento”, como mostra esta passagem:
Dizemos a vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que dormem. Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que estivermos vivos, seremos arrebatados com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre. 
1 Tessalonicenses 4:15-17

No dia 14 de outubro 2 por cento da população mundial simplesmente desaparece sem deixar vestígios, assim, do nada, e o enredo trata da vida daqueles que “ficaram”, partindo do pressuposto de que os desaparecidos foram a algum lugar. Em um primeiro momento poderíamos pensar em um argumento clássico de que as pessoas viviam suas vidas normais até que o arrebatamento trouxe o caos à vida das pessoas, a clássica ideia de que um evento traumático que produziu um sintoma. Pois é aqui que a diretora e seus roteiristas literalmente arrebatam nosso senso comum.

Nosso corpo vem de uma única célula que cumpre um programa genético específico, porém em interface membranosa com um “fora” que nos penetra em diferentes modos de invaginação, desde as entradas e saídas de substâncias da célula, suas excreções até a formação de um corpo complexo dotado de pele, pulmões, sistema digestivo, visão e audição. Em muitos níveis de percepção o “dentro” e o “fora” não são distinguíveis, mas nesta “realidade” vivida existe o “dentro” e o “fora” do corpo. O ponto é que só posso escrever ou pensar nesta realidade a partir de um ponto de vista  filosófico ou científico, que são sistemas de  linguagem e esta linguagem está inscrita em um bordado de significações que pertencem a minha cultura, minha sociedade e à maneira como eu sou capaz de operá-las desde que iniciei o desenvolvimento daquilo que alguns chamam de mente, alma, psiquê, sistema cognitivo, mundo vivido, etc. Este mundo vivido colocado em pensamentos, conceitos e palavras é um mundo que posso transitar no tempo, no espaço, mas memórias, nos textos, na internet e em tudo mais da produção humana e esse trânsito existe no registro do simbólico. Estamos mergulhados no simbólico, e não foi uma tarefa fácil chegar a esse ponto partindo de uma criatura nascida apenas com células. 
No mundo dos adultos que compartilham plenamente da linguagem a realidade é plena de segurança ontológica: vivemos neste mundo, neste universo, nesta “realidade” e ela sempre foi assim, em termos individuais e coletivos, todos nós temos uma história que nos trouxe aqui e vivemos em uma vida “normal” e os eventos estranhos a esta realidade psíquica vivida são anomalias, .doenças, “traumas”. Um trauma, no cotidiano, é um evento que provoca uma ruptura em algo estável e “normal” e que produz sintoma.
Pois é justamente o oposto, o enxerto de um sistema simbólico como o que vivemos representa uma intrusão radical, uma fenda sígnica tão grande que faz com que tenhamos que recorrer de palavras e conceitos para entender nosso próprio corpo ou mesmo o ar que respiramos, e o fazemos de maneria extremamente precária, visto que o sistema simbólico mais confiável para isso, a ciência, com todas suas vicissitudes, existe a poucos séculos em uma humanidade que está aqui há milênios.
Podemos pensar, então, a realidade psíquica como um imenso buraco no qual um evento traumático não é nada além de uma intrusão do real que vem a chacoalhar as bordas e reposicionar o simbólico e reordenar um espaço subjetivo.
A realidade em si é caótica, o trauma apenas se encaixa nela. De seres falados para seres falantes todos sofremos o arrebatamento do sentido.
È isso que os habitantes das cidades americanas de Mapleton e Miracle experienciam, não a loucura, mas sim uma dança das cadeiras de todas as “loucuras” pré existentes ao grande arrebatamento.
A pergunta mais óbvia a ser feita na série é sugestivamente colocada de lado, assim como no conto da carta roubada de Poe Dupin fala de um jogo de ler nomes de países em um mapa onde as letras maiores não são vistas: o que aconteceu? Por que houve o arrebatamento ou por que aquelas pessoas específicas?
O vazio é colocado ali de propósito para que o universo do símbólico transite , ou como diria Suassuna “ao redor do buraco tudo é beira”.

O tema das grandes catástrofes é recorrente na historiografia cinematográfica desde os monstros como King Kong, Godzilla até fenômenos como incêndios, vulcões de terremotos e chega aos dias de hoje às séries como The Walking Dead com um fio condutor comum: a aparente inexorabilidade ou falta de sentido dos eventos devastadores que, por fim, aparecem ao mesmo tempo como tangenciais e mote do enredo de fundo: relações amorosas, políticas e familiares. Zizek, no filme “Guia do pervertido sobre cinema” interroga sobre Titanic: o filme narra uma história de amor sob o fundo do desastre, mas se o navio não tivesse afundado o amor dos protagonistas teria atravessado as décadas?
O que representa um grande evento singular na série “The leftovers”, repleta de personagens paradoxais, idiossincráticos e complexos, que agem e reagem de maneira tão singular na composição da trama? Talvez possamos trazer aqui uma das obras mais comentadas, elaboradas e representativas do cinema catástrofe que também mostra uma teia de relações humanas atravessada por um evento sem sentido e mortífero “Os pássaros”, onde um homem solteiro que vive com a mãe e a irmã encontra uma mulher forte e independente em uma loja de pássaros, surge uma tensão sexual entre ambos e , quando ela resolve visitá-lo na pequena baía do interior da califórnia, subitamente todos os pássaros da região atacam ferozmente a população.Não por acaso, os pássaros que ingressam violentamente na casa do protagonista se chamam merlos, em inglês "lovebirds' pássaros do amor, emissários do transbordamento da libido.
Zizek , a partir de um autor chamado Robin Wood que sugere três interpretações possíveis da trama , a cosmológica, a ecológica e a familiar. A cosmológica diz respeito ao próprio universo hitchockiano e trata do evento traumático como desvelador de uma realidade recalcada na aparente normalidade das relações familiares, a ecológica é da inevitabilidade da reação da natureza ao humano e a familiar, na qual a chave do filme está nas tensões familiares e que ataque dos pássaros representaria o elemento desagregador e discordante

Mas , afinal, pergunta Zizek, por que atacam os pássaros? Por que em “The Leftovers” as pessoas são arrebatadas? A proposta de Zizek é que retiremos o grande evento catastrófico da trama. Os pássaros sem pássaros e “The leftovers” sem o sumiço, pois ambos os eventos parecem servir de véu encobridor de toda a complexidade subterrânea, exatamente como a velha teoria do trauma. A dimensão do traumático não é do trauma, é o mundo subjetivo que é traumático, daí a passagem que freud faz pela homofonia entre o traum do trauma e o traum do sonho e, afinal, o que somos nós senão seres feitos da matéria dos sonhos, como diz Shakeaspeare, efeitos de um grande vazio que nos convoca a presença, e o Outro não será o mero contorno imaginário do apagamento que esconde um abismo?
O protagonista da série Kevin Garvey, descobre que pode morrer e rescuscitar quase como alguém que dorme e sonha, e o suposto mundo dos mortos é exatamente igual ao nosso, porém com todos seus personagens e enredos embaralhados, reconfigurados,e , da realidade do filme a realidade do mundo dos mortos á um real que traumatiza e provoca o reordenamento das peças no simbólico, por isso o sonho é a realização de um desejo, como diz Freud quando mostra as condensações e deslocamentos dos personagens oníricos:um tio vira um pai, uma mulher são três, o pai está morto e não sabe..
E como temos acesso ao sonho? Ao seu resquício, seu rascunho, seu contorno rasurado na palavra.
Na segunda e na terceira temporadas a abertura da série possui uma ironia dissonante de várias imagens de álbuns de fotografia mostrando casais, famílias, amigos, crianças e na imagem dos arrebatados só resta o contorno, afinal, não temos acesso a este outro senão pela camada acima da pele? E não é o mesmo com o sentido de uma palavra dita ou escrita?
Leftovers mostra a dialética entre lembrar e esquecer, entre a essência e a imagem de um semblante, o arrebatamento como a intrusão do real em um espaço já invadido, afinal, todos vamos desaparecer um dia para alguém e isso não fará mesmo nenhum sentido.
Termino com a citação da amiga poeta psicóloga e colega de laboratório Daniela Delias, que escreveu no Facebook sobre a série em 16 de Julho de 2017:
Qual o sentido da existência frente à morte, ao que não se controla ou explica? Lembrar? Esquecer? Matar-se? Seguir em frente? Entregar-se a deus? Sabê-lo morto? Correr mundo afora (e adentro) atrás de uma resposta? Uma discussão absolutamente fantástica sobre o real e o sonho, embalada por uma trilha musical e atuações magistrais. É preciso passar por uma primeira temporada não tão instigante até chegar neste ponto em que o nosso próprio arrebatamento torna-se inevitável.

Referência.
Zizek, Slavoj (compilador) Todo lo que usted siempre quiso saber sobre Lacan y nunca se atrevió a preguntarle a Hitchcock. Buenos Aires, Manantial, 2013.