O cinema inaugura
o século XX como sua arte mais representativa, por ser um fenômeno
de massa e por poder integrar em si todas as outras artes: pintura,
música, poesia, literatura, escultura, além, é claro de sua
importante contribuição para as ciências pelos seus documentários
e possibilidades de registro e transmissão nunca antes imaginados
anteriormente. Para além disso, o cinema se constituiu também como
forma de arte que produziu suas próprias linguagens e, desde sua
criação foi objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento.O
que interessa aqui são duas ciências muito intimamente ligadas
entre si que também nasceram na aurora do século XX e que
apresentaram nos últimos anos grandes contribuições aos estudos
cinematográficos como ferramentas de análise para minhas
pesquisas, a saber, a semiótica e a psicanálise.Pretendo aqui
esboçar algumas questões importantes para quem se interessa pelo
tema e quer iniciar a difícil mas prazerosa tarefa de assistir
filmes e produzir algum pensamento escrito sobre eles. Aqui vão
algumas considerações metodológicas , ontológicas e
epistemológicas sobre a pesquisa em cinema que podem servir para
a pesquisa em geral também porque há temas que são universais:
autoria, método, empirismo, relações entre teoria e prática e
considerações éticas, estéticas e políticas do desejo de
pesquisar. Para tanto, começamos com a pergunta fundamental: quem é
o autor? Aparentemente essa questão é simples, “ora é quem está
aqui sentado escrevendo o texto”, mas quando olharmos mais de perto
os processos de subjetivação e suas vicissitudes, a pergunta fica
mais complexa.
1-Ser autor
Eu já ouvi mais de uma
vez alunos da Universidade dizerem que seus professores, quando pedem
trabalhos ou ensinam metodologia, costumam dar muita ênfase aos
aspectos formais e normativos e os incentivam a não emitirem as
suas “opiniões”, chegando, inclusive a exigir um certo número
de autores citados por parágrafo do texto (tornando a citação algo
obrigatório, quase preexistente a escrita). Penso que tal postura é
um simulacro (ou seja, uma forma deturpada imperfeita e mal acabada)
da verdadeira e importantíssima função das normas em textos
“acadêmicos” ou não que é dar fluidez comunicativa ao texto e
( quando isso não for o objetivo) não confundir ou enganar o
leitor. Quando extraímos uma ideia do livro de outro autor (vamos
dar como exemplo Freud), se quisermos reproduzir exatamente o que ele
disse, devermos indicar com algum destaque como se essa voz fosse de
um gravador (citação literal) ou o resumo desta ideia com nossas
“próprias palavras” sempre colocando o nome de quem disse, e
aqui considero alguns autores como pessoas que se esforçaram muito
para produzir conhecimento e não seria justo nos apropriarmos dele
assim, além do mais é importante informar o leitor onde ele pode
achar essa ideia e conhecer mais intimamente o autor, e por isso
também devemos cuidar do datamento das obras. Freud morreu em 1939
mas suas obras estão até hoje sendo reeditadas, logo,se colocarmos
a data original apenas o leitor dificilmente terá acesso a edição
original e se colocarmos a data de 2012, por exemplo, omitiríamos
importantes informações sobre o contexto histórico, epistemológico
e até mesmo biográfico no qual Freud produziu os conceitos usados.
Por isso, escrever um texto com as normas e citar corretamente um
autor não é uma mera formalidade e sim parte fundamental e
integrante do próprio conteúdo do texto em si. Mas atenção: essa
regra vale apenas para quando sabemos explicitamente qual autor
estamos citando, pois, afinal, uma das grandes discussões que
autores como Michel Foucault, Deleuze & Guattari, e o supracitado
Michel Schneider se debruçaram nos últimos tempos é justamente “o
que é um autor”. Quando escrevemos um texto somos obrigados a
recorrer a uma linguagem estruturada social e culturalmente, usando
palavras que possuem uma história e conceitos cuja propriedade às
vezes se perde no tempo e faz parte já constituinte do domínio
linguageiro. Michel Schneider, na obra “Ladrões de palavras”
provoca um divertido movimento conceitual ontológico: todos os
textos do mundo foram produzidos por um único autor chamado
humanidade ou cada texto, por mais repleto de roubos de ideias que
ele contenha, a pessoa que escreve, compila, organiza e produz um
texto sempre é um autor singular.
No caso da ideia mofada
da academia que nos obriga por leis tácitas a considerar um autor como
autoridade e citá-lo obrigatoriamente ou fazer exaustivas e
enfadonhas revisões bibliográficas o filósofo francês Bruno
Latour produziu uma imagem exemplar: quando um autor cita muitas
“autoridades” no seu texto isso equivale a convocar uma gangue
para bater no leitor solitário que precisa enfrentar uma multidão
para chegar a compreender uma ideia ou um achado científico.
Veremos a seguir que a
questão da autoria e da influência é um dos motivos primordiais de
desenvolvermos estratégias metodológicas amparados na semiótica e
na linguística na análise de obras cinematográficas, pois um
cineasta, tal qual o autor de um texto, também sofre de influências
e lança mão de elementos intertextuais na sua obra, porém na
maioria das vezes isso não é colocado em normas acadêmicas, logo,
um dos trabalhos do analista de cinema é garimpar referências,
citações e influências usadas pelo diretor e os roteiristas e como
elas podem compor também uma obra singular. Mas em primeiro lugar,
vamos pensar um pouquinho sobre a gênese da pesquisa
cinematográfica.
2-Deixar-se afetar
Afinal, o que nos convoca
a pesquisar ou escrever sobre um tema? Voltando ao item anterior, eu
tenho uma estimativa de que nesses mais de dez anos de docência eu
possivelmente já trabalhei com uns dois mil alunos e tenho pesadelos
quando imagino como seria se eu fosse um professor que os obrigasse a
respeitar normas por autoridade ou fazer imensas revisões
bibliográficas com o mínimo de autoria. Pelo contrário, minha
interrogação é sempre a mesma: vocês por acaso pensam no leitor
quando escrevem um trabalho? Será que os trabalhos acadêmicos
precisam obedecer a sina do conceito de trabalho na língua
portuguesa católica: um instrumento de tortura , sacrifício e
punição medieval chamado “tripalium”?E
eu, professor, devo ser obrigado a ler esse verdadeiro exército de
instrumentos de tortura?
Toda
vez que peço a meus alunos que escrevam algo, eu faço a
advertência: eu gosto de ler bons textos, e bons textos são aqueles
que me fazem rir, chorar, ou que me provoquem questões inusitadas, me
surpreendam ou mostrem uma abordagem original do assunto. A única
regra de avaliação? Que os trabalhos mostrem realmente que os
alunos acompanharam as discussões em aula, que aproveitaram o tempo
e o espaço caríssimos da universidade, e que, enfim, alguma coisa
os afetou, produziu algo, nem que seja raiva ou tédio;
Assim
também funciona com a pesquisa, e duplamente com a pesquisa em
cinema: o cinema é algo que produz desejo, nos convoca nos arrebata.
Eu vou ao cinema desde pequeno, na época dos cinemas de bairro ou
calçada naquela época os filmes em cartaz sempre traziam algo para
o debate ou a simples contemplação estética dos efeitos especiais,
da tela gigante do som dolby stereo recheado de graves: efeitos
especiais inusitados, histórias emocionantes, comédias, filmes
chamados “cult”, violência extrema, pura diversão. Freud
escreveu um texto fundamental sobre o “estranho” ou "infamiliar" ( das unheimliche),, o algo mais da experiência humana que não cabe na
mera razão, algo que é do desejo em si. Mais adiante trataremos as
questões da semiótica , mas adianto aqui que um de seus grandes
autores, Charles Alexander Peirce, coloca que os signos, os sinais,
as palavras , as imagens, as músicas, a poesia, são nosso primeiro
nível de experiência com o mundo e eles representam um impacto uma
marca, sendo apenas nas próximas camadas da experiência que
poderemos passar aos próximos componentes analíticos, o
significante e o significado. Eu jamais esquecerei da primeira vez
que assisti “Laranja mecânica”, da emoção que senti com a
trilha sonora e do quanto fui perturbado pela violência e pela
crueldade, mas também pelos ângulos de câmera, a ironia,
perfeição da fotografia e do roteiro, o que me fez discuti-lo em
inúmeras rodas de amigos, ou de escrever um capítulo de minha tese
sobre ele ou de utilizá-lo como material didático em várias de
minhas disciplinas e sempre sentir o mesmo prazer em cada audição
dos primeiros acordes de Walter Carlos entre os olhos azuis de Alex.
É assim que começa.
3-Fenomenologia,
semiótica e psicanálise
Diz o
biólogo-fenomenólogo chileno Humberto Maturana, em sua “Ontologia
da Realidade” que tudo o que é dito é dito por alguém”, frase
que sintetiza a fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty e que Lacan
associou sabiamente a ideia de realidade psíquica de Freud, afinal,
nosso mundo é um “mundo vivido”, não temos acesso “direto”
às coisas do mundo, no mínimo nossas estruturas cognitivas precisam
estar preparadas, pois, sem isso, toda vez que víssemos uma pessoa
desconhecida veríamos uma luz branca que iria tomando forma. Segundo
Maturana, aquilo que apreendemos do mundo é apenas 20%, os 80
restantes foram formados desde o início de nosso desenvolvimento:
noções de forma, de profundidade, presença e ausência, figura
humana... a própria ideia do que é o mundo. Com o cinema é assim:
cinema é ilusão e crença, acreditamos que o super -homem voa na
hora que somos arrebatados pelo filme e poucos de nós pensa nos
efeitos especiais, do contrário a ficção não teria graça
nenhuma. E de que forma nosso ser no mundo é capaz de incorporar
este universo e organizar esta experiência? Os Signos, a linguagem,
as palavras, conceitos, narrativas, imagens mentais, mitos, aquilo
que Freud chama de representações representativas. A psicanálise
nasce de representações, Freud e Breuer estudaram o fenômeno da
histeria a partir de braços, paralisados, cegueiras, delírios ou
alucinações que, a partir de cadeias associativas, representavam
ideias bastantes distintas das manifestas, estavam ali “escondidas”
e “à mostra”ao mesmo tempo. A palavra dita, o ato falho, o
chiste, a narrativa do sonho são ideias que estão no lugar de
outras ideias. Assim o grande pesquisador semiótico e escritor
Umberto Eco define o signo: é uma mentira, é algo que está no
lugar de outro. A palavra cadeira é utilizada como instrumento
mental para nos referirmos a um objeto mesmo estando a quilômetros
de sua presença “concreta”.
O grande inventor da
ciência semiótica e linguística foi Ferdinand de Saussure, cuja
obra chegou até nós pela compilação de suas aulas por dois
colegas e um aluno. È Saussure quem postula a principal teoria
dicotômica do signo: o signo é composto de uma imagem icônica
chamada significante e de uma unidade de sentido inscrita na linguagem
chamada significado. A palavra cachorro é um signo composto por suas
letras, morfemas e fonemas “cachorro” e quando a ouvimos ou lemos
estamos inseridos em uma rede simbólica que nos conduz ao animal, ou
a alguma ofensa ou a alguém que nos “passa o cachorro” o que
significa um engodo na gíria gaúcha. A sacação de Saussure é
singela em um exemplo: uma ovelha sabe que uma pessoa está falando,
o som das palavras chega ao seu ouvido mas ela não é capaz de
entender, pela sua incapacidade cerebral que a impossibilita de
estra inserida na rede cultural dos significados. Outro exemplo é o
papagaio, que aparentemente reproduz a palavra humana mas não a
compreende. Ou de determinadas patologias causadas por lesões em
áreas do cérebro relativas a linguagem nas quais as pessoas
reconhecem as palavras mais não conseguem acessar seu sentido. O
signo, para Saussure e sucedâneos, é uma bifurcação. Aqui nasce
a linguistica estruturalista, os signos possuem significantes e
significados que comportam uma experiência com o mundo atravessada
por uma rede estruturada simbólica, cultural, social. Mas cuidado:
dizer que a rede é estruturada não quer dizer que ela seja rígida.
As palavras mudam de sentido ao longo do tempo, tanto no eixo
sintagmático (os usos locais, singulares, regionais) ou
paradigmáticos ( as mudanças históricas e sociais da língua).
Para Saussure a língua é uma coisa viva.
Desta maneira, quando um
cineasta pensa um roteiro, os atores, os cenários, os objetos,
ângulos de câmera, transições, cenas, diálogos, e toda a
composição do filme, o que ele está fazendo é trabalhar com um
processo de significação cujo objetivo (ou um deles) é, através
dos signos,inserir o espectador em uma rede simbólica e este pode
estar mais ou menos acoplado. O trabalho de pesquisa em cinema
envolve também a captura dos signos e a exploração dos diferentes
sentidos daquilo que está na tela, que pode conter questões
pessoais, sociais, históricas, subjetivas, filosóficas, etc que vão
emergir no encontro da obra ( na sala de projeção na qual todo o
aparato que produziu o filme está ausente) e a vivência do
espectador. Um exemplo interessante é o filme 2001, cujo roteiro foi
produzido conjuntamente por Stanley Kubrick e Arthur C. Clark. Na
obra escrita temos acesso a todas os signos e seus significados, já
na obra cinematográfica Kubrick trabalha com pouco texto e muitos
signos codificados. O enigmático monolito e sua origem não são bem
explicados no filme, ,mas quem ler o livro terá acesso ao seu
significado bem restrito rede simbólica do roteiro: um artefato
alienígena com um objetivo bem preciso.
4- Linguistica e
psicanálise:Significantes, significados, simbólico e aí vai o
método
Durante muitos anos
participei de acalorados debates a respeito dos mistérios envolvendo
vários elementos de “2001”, desde o significado do monolito até
a profusão caótica de imagens e viagens espaciais da clássica
sequencia final, e sempre as discussões eram longas e encerravam com
um gosto agradável de “quero mais”, uma deliciosa incompletude.
Então, há pouco mais de um ano, eu resolvi finalmente ler o livro,
e a sensação de saciedade ao saber o “significado” de tudo
aquilo me provocou uma certa náusea, uma sensação de ter sido
reprimido, violentado. É disso que Lacan fala no seu seminário
sobre a Angústia: ela não vem da perda do objeto e sim da queda
deste e do encontro com o objeto real irrepresentado.
Jacques Lacan,
principalmente na primeira metade dos seminários dedicou-se dar
grande (e fundamental) ênfase ao fato de que Freud concebeu os
principais conceitos e métodos da psicanálise a partir da FALA de
seus pacientes, e é a fala, e somente ela, o material de trabalho a
partir do qual temos acesso aos sintomas, aos atos falhos, chistes,
delírios, alucinações e até mesmo ao sonho, afinal, todo sonho na
análise é um sonho contado. Ora, como a nossa ferramenta de
trabalho é a fala e o temos acesso ao inconsciente pela via da
representação, nada mais adequado do que trazer a linguística e a
semiótica para a turma da psicanálise, ou ao contrário. Contudo,
um pequeno problema se fez presente: o inconsciente, apesar de estar
ligado às representações culturais, na vida do sujeito em situação
de análise, acaba por constituir uma rede linguística com
características próprias, instáveis, caóticas, sujeitas às
singularidades do divã e da escuta. Aqui o binarismo imediato do
significante que oculta um significado simples é substituído pela
escuta singular das homofonias, condensações e deslocamentos.
Quando um paciente diz “Cachorro”, o analista pode pensar em um
momento no animal, mas o sujeito pode estar ligado a uma trama
subjetiva inconsciente e a escuta pode se direcionar para “cai,
choro”, é o desejo inconsciente rompendo as redes linguísticas e
as singularizando de maneira radical.
Aqui então reside uma
possibilidade de método de análise e pesquisa cinematográfica
baseado na linguística e suas bifurcações com a psicanálise, a
partir de alguns passos ( a palavra Methodo significa caminho)
1- Arrebatamento
(SIGNO). Aqui trazemos a descrição do filme e tudo aquilo que ele
nos provoca.
2-Significante- os
elementos perceptíveis e estruturantes do filme que são percebidos
no arrebatamento: frases, palavras, roteiro, atores, cenas, música
etc. Aqui trazemos vemos um monolito ocupando uma posição
importante no filme
3- Significado: o que
podemos extrair disso a partir dos elementos presentes na cultura
geral, ou na cinematográfica, nas ciências humanas ou quaisquer
outros universos de referência que nos levem a recolocar a
experiência vivida do cinema em experiência reflexiva, ou
teoria.Aqui buscamos no livro o significado de monolito em 2001.
4- A bifurcação-aqui
também podemos acrescentar elementos singulares e subjetivos da
experiência, aqui podemos pensar, imaginar e produzir infinitos
sentidos para o monolito, ou nos contentarmos com nenhum.Aqui está o
significante de Lacan.
È isso.