Não fuja da luta, covarde

Não fuja da luta, covarde
Empate

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Dunkirk: o mundo já acabou e somos felizes




"Dunkirk", mais recente filme do diretor Christopher Nolan, é a evidência estética mais apavorante de uma verdade tão grande que somos incapazes de percebê-la: vivemos em um mundo que já acabou, e que estamos usufruindo apenas dos momentos finais da total aniquilação.
O historiador Eric Hobsbawn deu o título de seu livro "A Era dos extremos" por considerar  o que ele chama de "breve século XX" (que, segundo ele, ´breve porque teria começado em 1914 e terminado em 1989) o período de maiores avanços humanos e tecnológicos e também do de maiores genocídios de nossa história. Segundo o autor, as duas grandes guerras foram os primeiros conflitos em escala global e bateram recordes de civis e solados mortos, e na violação de inúmeros códigos de guerra até então respeitados no chamado mundo civilizado.  Um trecho de sua obra
"As maiores crueldades  de nosso século foram as crueldades impessoais decididas à distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais. Assim o mundo acostumou-se à expulsão e matança compulsórias em escala astronômica,  fenômenos tão conhecidos  que foi preciso inventar palavras para eles: " sem Estado" "apátridas" e "genocídio".
Nós, habitantes da bolha ontológica do séxulo XXI, abrimos livros de história e lemos palavras silenciosas e frias, ou acessamos documentários ou filmes inodoros que mostram  o moedor planetário de carne em um período de 30 anos : holocausto judeu, massacre armênio, campos de concentração alemães na polônia e japoneses na Manchúria,  duas bombas nucleares no japão, bombardeios de Napalm, submarinos, canibalismo e congelamento no front Russos. Hitler, Mussolini, Stalin e a indústria bélica americana ganhando status de motor da economia...
Nós não sabemos de nada...
 Quando entre na sala IMAX e já nos primeiros segundos de Dunkirk meu coração disparou junto com um tiro de fuzil que estourou meus tímpanos, que a câmera veloz com lentes profundas percorreu cenários   de tristeza cinzenta, desamparo, medo solidão...Milhares de jovens em fila na praia, encurralados pelos inimigos invisíveis, sendo bombardeados com intermitência,  ganhando esperanças vãs em navios que logo são afundados. Meninos sem vergonha de ter medo e muito distantes dos heróis corajosos... Nolan não dá identidade a seus personagens, pouco sabemos deles, um nome, um sobrenome,  um olhar... O espectador sobrevoa a ação e seus vínculos não são com os personagens... não, não com eles... e sim com a água gelada que penetra seus pulmões, o fogo, o ruído ensurdecedor das bombas.
França e Inglaterra unidas combatiam Hitler que encurralou as tropas na cidade portuária de Dunkerke, e Churchill  organizou o maior resgate de soldados que seu viu em todas as guerras.. Uns dizem que Hitler vacilou,  outros que permitiu a escapada pois ainda pensava em negociar com os ingleses uma aliança...
Mas isso não é verdade, é história.
A verdade é o que todos vemos no mundo atual: morte, medo, desespero que pouco entendem de países, logística... Países são lógicas abstratas. Jovens armados sob a mira de torpedos, granadas e metralhadoras são apenas carne explodindo, e fugindo, e sentindo....
"Dunkirk" não é mais cinema.  Eu nem sei o que mais é.
Só sei que  no nascimento do breve século XX um homem pode escrever sobre a canalhice tardia de nós, observadores da cínica história, herdeiros de um planeta morto, nós, os felizes.
"“Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam o olho.
Eles deixaram as regiões onde era duro viver: pois necessita-se de calor. Cada qual ainda ama o vizinho e nele se esfrega: pois necessita-se de calor.
Adoecer e desconfiar é visto como pecado por eles: anda-se com toda a atenção. Um tolo, quem ainda tropeça em pedras ou homens!
Um pouco de veneno de quando em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno, por fim, para um agradável morrer.
Ainda se trabalha, pois trabalho é distração. Mas cuida-se para que a distração não canse.
Ninguém mais se torna rico ou pobre: ambas as coisas são árduas. Quem deseja ainda governar?
Quem deseja ainda obedecer? Ambas as coisas são árduas.
Nenhum pastor e um só rebanho! Cada um quer o mesmo, cada um é igual: quem sente de outro modo vai voluntariamente para o hospício.
“Outrora o mundo inteiro era doido” – dizem os mais refinados, e piscam o olho.
São inteligentes e sabem tudo o que ocorreu: então sua zombaria não tem fim. Ainda brigam, mas logo se reconciliam – de outro modo, estraga-se o estômago.
Têm seu pequeno prazer do dia e seu pequeno prazer da noite: mas respeitam a saúde.
“Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, e piscam o olho'
Nietzsche, Assim falou Zaratustra



quinta-feira, 3 de agosto de 2017

A Democracia dos Campeões

Sou um frequentador apaixonado do centro de Porto Alegre ,que hoje os eufemismos da gentrificação chamam de "centro histórico" algo que não é centro (fica na beira do rio) e não é o único lugar "histórico" de minha cidade. A ironia é um apanágio fundante gaúcho, e , por ela, nunca entrei em um de meus lugares preferidos da cidade: uma loja de troféus da Galeria Chaves. Eu passo em frente a loja quando quero acesso rápido da Andradas ao Mercado Público e sempre fico preso aos mesmos devaneios de como seria entrar ali e comprar um troféu para mim mesmo;Cheguei até a rascunhar em meus pensamentos o roteiro de um curta-metragem no qual um sujeito desiludido com a vida encontraria a solução definitiva para sua melancolia comprando uma medalha, uma taça ou uma estatueta dourada.
Pensei até no título "Auto estima: felicidade em três parcelas".
Mas desde ontem resolvi mudar o título para "Democracia brasileira como eu me lembro".
Ora, é claro que é um grande delírio pensar que eu seria um campeão comprando um troféu, afinal, para ganhar algo é preciso merecer: escrever alguma obra relevante, vencer um campeonato, enfim, destacar-se em alguma competição ou concorrência, fazer por merecer, conquistar, galgar degraus...
Quando os parlamentares brasileiros decidiram que esse país seria uma democracia a Assembléia Constituinte se reuniu e elaborou um dos documentos mais complexos e abrangentes da história brasileira, a Constituição de 1988, que instalou no Brasil um imenso software de democracia a ser utilizado por milhões de usuários que mal sabiam ligar seus computadores na tomada, ou retomando a metáfora do troféu, entraram em um campeonato no qual não sabiam nem as regras de inscrição.
Desde Fernando Collor de Mello a democracia Brasileira foi descobrindo as regras com o campeonato em andamento: de um lado a população e os movimentos sociais lutando pelas garantias de direitos e do outro os verdadeiros donos do país, as velhas capitanias hereditárias. 
Lembro do filme "Carruagens de fogo", sobre os atletas que disputaram a primeira Olimpíada da era moderna, sem saber exatamente o que era essa competição e acreditavam na máxima do barão de Coupertain "o que interessa é competir".
Nas Olimpíadas de hoje há pouco espaço para a surpresa, o amadorismo, os grandes heróis. O jogo é jogado estritamente pelas regras, pelo preparo, pelo inexorável poder econômico das nações. 
Assim como na política. 
Os profissionais da política agora dominam as regras do jogo e ganham todos os troféus, e descobrimos os poderes ilimitados da democracia capitalista: crimes de corrupção são julgados politicamente, o presidente indica ministros do supremo que irão julgá-lo e estes mesmos são sabatinados pelo congresso nacional, que decide se o presidente pode sofrer impeachment.
Sim, meus amigos, o cristianismo dominou o mundo por dois mil anos com um livro que foi lido por 10 por cento dos cristãos.
O que vimos ontem foi o exercício pleno da democracia, por quem aprendeu a ler o regulamento da competição.