Não fuja da luta, covarde

Não fuja da luta, covarde
Empate

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

"A multiplicidade de olhares e sentidos da violência e da pornografia no cinema: uma análise semiótica, fenomenológica e psicanalítica"





“...não devemos nos esquecer da ambiguidade radical do Real lacaniano: ele não é o referente último que deve ser coberto/reformado/domesticado pela tela da fantasia — o Real é também e primariamente a própria tela como o obstáculo que sempre-já distorce nossa percepção do referente, da realidade lá fora. (ZIZEK, 2008, p. 172)”.
O cinema é uma arte criada para o século XX e, de certa forma o inaugura, juntamente com a descoberta Freudiana do inconsciente e do princípio de realidade. Da mesma forma que o sonho  é a realização de um desejo, a escuridão da tela seguida da exibição arrebatadora de um real que nos diz o que devemos desejar, inundando a percepção com uma noção de realidade na qual os três registros desvelam-se imbricados: real, imaginário e simbólico, ou signo, significante e significado.
O cinema tem a potência de nos fazer alucinar de delirar, e como no sonho, somos levados por instantes a “esquecer”  que aquilo que experimentamos como “verdade” é a resultante de texto, roteiro, montagem, edição. Assim também o é no caso da violência: a violência “real” é imbricada sinergicamente com ao violência “imaginária” e “simbólica’.
Apresentamos aqui o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Violência, cinema e psicanálise, que chamamos de LAPOT. Nosso laboratório tem como  objeto de desejo e pesquisa a exploração psicanalítica e filosófica da radicalidade da violência no cinema.
Nossa pesquisa propõe uma provocação conceitual sobre a violência como ela é percebida na obra cinematográfica, jornalística e televisiva através de uma incursão metodológica que transversaliza a semiótica, a fenomenologia e a psicanálise. Assim como Freud descobriu que o trauma não é algo oriundo de uma “realidade” a violência também pode ser analisada como produção sintomática suas expressões simbólicas, reais e imaginárias.
O objetivo deste encontro é propor um convite a exploração do cinema como potência teórica e analítica que criam condições de possibilidade  de pensar a violência em uma sociedade do transbordamento ideológico e semiótico   da experiência protagonizado pela internet, pelo cinema e pela televisão.


Prólogo

Milos- As crianças incomodam, não posso  fazer isso no jardim de infância
Vukmir- Nesse caso, entre você e as crianças, eu  escolho as crianças, elas são a minha especialidade, a minha vida. A culpa é minha, eu achei que se você não soubesse antes você...
Milos-Se eu soubesse desde o início eu teria recusado
Vukmir- O que você disse? Jardim de infância? Pode-se dizer que sim, toda esta merda de país é um jardim de infância, um bando de crianças rejeitadas por seus pais. Toda a sua vida você foi obrigado a provar que é capaz de cuidar de si mesmo, para provar que você fazia cocô, comia, fodia, bebia, sangrava, ganhava dinheiro...fazia tudo o que fosse preciso para sobreviver até que você morre. Você acreditaria se eu te dissesse que eu e esta família maravilhosa que você está tão ansioso para deixar somos a única garantia de sobrevivência desta nação?  Nós somos a espinha dorsal da economia deste país. Só nós podemos provar que esta nação está viva e pronta para qualquer coisa.
Milos- Eu posso ver que você está louco, eu não preciso de provas. Apenas me diga, como isso se conecta com a pornografia?
Vukmir- Não.. Milos... Não, não não, pornografia não Milos,  não é pornografia, é a própria vida! É a vida de uma vítima. Amor, arte, sangue! Carne e alma de uma vítima, transmitidos ao vivo para o mundo que perdeu tudo e agora está pagando para observar no conforto de uma poltrona.
Milos- Eu não tenho nenhuma dúvida que vende bem com base na grana que você me ofereceu.
Vukmir- Vítimas vendem, Milos. Vender uma vítima é o mais caro neste mundo. A Vítima sente mais e sofre melhor.Nós somos vítimas Milos. Você, eu, toda esta nação é uma vítima.
Milos- Nós estamos apenas muito atrasados. Eu não serei uma vítima por isso.
Vukmir-Mas Milos, você é o único neste filme que não é uma vítima!
Milos- É mesmo?
Na parede, uma tela de projeção é aberta
Vukmir- Me permita, como seu guia, mostrar a você o poder de uma vítima real.
A imagem que aparece é de um a mulher grávida em cima de uma mesa sentindo dores do parto. Um homem  com óculos escuros entra na sala e faz o trabalho de parto, abaixa suas calças e começa a penetrar o bebê. A cena é intercalada pelo olhar da mulher, que esboça um leve sorriso de satisfação.
Milos evita olhar e sai correndo da sala.
Vukmir-Milos, será que você não entendeu? Este é um novo gênero. (em inglês) “New born porn”!!! New born porn!!!
Em Porto Alegre desde 2005 é realizado um dos maiores festivais cinematográficos alternativos da America Latina e do mundo,  o “Fantaspoa”, cuja proposta é apresentar ao espectador o que há de mais atual ou o que é considerado clássico no cinema “fantástico”, com ênfase no terror. Alguns filmes que interessam nesta pesquisa foram apresentados com grande polêmica neste festival, como o exemplar A Serbian Film (em sérvio, Српски филм; em português, Terror sem Limites) é o primeiro filme do diretor sérvio Srđan Spasojević, lançado em 2010. O filme  estreou no Brasil em Porto Alegre,  Fantaspoa e sua exibição e comercialização foram proibidas em diversos países. “O  climax de “A Serbian Film”, e que gerou a polêmica em torno do filme, exibe uma cena de trabalho de parto na qual o recém  nascido é estuprado sob o olhar extasiado da mãe (cujo diálogo é transcrito no prólogo deste artigo). Para além disso na segunda metade do roteiro,  o protagonista, após ter sido dopado e forçado a participar das filmagens de um snuff movie, tem acesso a suas próprias memórias em flashbacks confusos e, principalmente através das  gravações da noite anterior. 
No século XXI, especialmente nos Balcãs, a produção cinematográfica  cuja temática transversaliza a pornografia, a violência e a política  é abundante, e podemos citar ainda outras duas obras obras a serem discutidas analisadas neste projeto: “Vida e morte de uma gangue pornô”,  de Mladen Djorjevic,  e “Funny Games” de Michael Hanecke. O primeiro filme foi vencedor da mostra competitiva do FANTASPOA 2010, que conta a história de um estudante de cinema frustrado que cria uma trupe de teatro pornô itinerante e termina por produzir snuff movies  cujos atores são vítimas decorrentes da guerra da Bósnia. Este filme  apresenta um conceito que dá nome a nosso grupo LAPOT, palavra que denota o ritual sérvio medieval de sacrifício dos idosos que “não servem mais”. A civilização é apresentada como interface amigável da barbárie, como também conta a história de “Funny Games”, película alemã que conta a história de dois cidadãos de boa educação que invadem residências de verão e torturam um casal de classe média com requintes de crueldade, porém sem jamais perder a postura bem-educada e polida. Em funny games é possível explicitar o que Zizek chama de “critica a ideologia” há uma certa ambiguidade nos personagens cujo discurso é polido e “civilizado” enquanto mostra a “família” “vitima”  burguesa que se sente desconfortável com estranhos que invadem seu campo de golf  e sua marina particular em uma dimensão oposta. A cena de abertura é emblemática: enquanto viajam em seu carro rumo a casa de campo o casal faz uma competição de quem adivinha os compositores eruditos que tocam no carro,  e repentinamente o diretor sobrepõe à musica uma trilha sonora de grind core  com urros guturais e volume ensurdecedor.
 Escolhidos como disparadores deste projeto, os três filmes tratam, para além da estética escatológica, de temas sociais, psicológicos e principalmente políticos. A violência explícita é apresentada em uma camada fílmica que Zizek (2014) chama de violência subjetiva, que escandaliza o espectador e o confronta com outras categorias que ele mesmo chama de violência simbólica ou sistêmica, pois denunciam que o cinema é apenas arte, ficção e roteiro, enquanto os extermínios e atrocidades de uma guerra de genocídio com interesses econômicos e políticos constituem a própria e assombrosa realidade.

Em sua fundação em fins do século XIX, o cinema instaurou a dicotomia entre a representação da realidade pelos irmãos Lumiére, que teve consequências na pesquisa antropológica (e no chamado documentário), e o cinema de Thomas Edison, que derivou para adaptações de obras literárias, musicas  e entretenimento, o germen para a grande produção americana do século XX  (Costa, 2014). Esta dicotomia, do ponto de vista da virtualidade experimentada pelo sujeito no ato fenomenológico e perceptivo, converte-se na clivagem paradoxal entre a ficção e  a realidade , afinal, mesmo sendo o cinema documentário ou ficção, “tudo é filme”.

O cinema, assim, apresenta-se como tensão imanente que oscila entre o acontecimento e sua representação, que se dobra no que concerne ao próprio do mundo dos sujeitos. Para se criar este tensionamento, o cineasta parte de um tema que provoca sensações e olhares. A vocação do cinema é levar o espectador, ao mesmo tempo, para longe e para perto de si mesmo, para nos aproximar e ao mesmo tempo nos afastar de nosso objeto de desejo, em um jogo de luz e sombra. Andrei Tarkovsky  levou isso a cabo na obra “Solaris”, a expressão cinematográfica do romance de ficção científica do polonês Stanislaw Lem. Em  Solaris  a humanidade descobre um planeta que possui uma substância coloidal que é capaz de captar memórias e transformá-las em matéria. O herói da história é Kelvin, um psicólogo que visita a estação para investigar  estranhos acontecimentos na estação, como o enlouquecimento dos cientistas. Ao desembarcar, Kelvin constata a presença de visitantes dentro da estação e ele próprio recebe a visita de sua esposa, falecida  10 anos atrás por suicídio, e experimenta a angústia  de encontrar-se com seu objeto de desejo (Kelvin sentia-se culpado), ao mesmo tempo que a esposa não era “ela mesma” e sim o que a substância solariana era capaz de copiar de suas memórias.Após a impressão incial de horror e de testar cientificamente sua sanidade,  Kelvin envia a visitante para o espaço em um foguete, porém ela se materializa novamente na manhã seguinte com novas memórias capturadas. Solaris é um exemplo da parcialidade objetal do imaginário, da mulher como fantasia masculina de seu próprio narcisismo. O importante é que a substância solariana escolhe a imagem dos visitantes. Ela diz o que  desejamos, assim como é o cinema. A angústia é a razão própria da perda do ato de desejar pelo advento do encontro com o objeto de desejo. Em “Além do princípio do prazer” Freud explora alegoricamente  a angústia referindo-se a escala evolutiva dos unicelulares aos pluricelulares no que diz respeito a regulação daquilo que “entra” e daquilo que “sai” do organismo. Para uma célula, é possível adaptar   a membrana para evitar os estímulos ameaçadores que vem “de fora”, o difícil é lidar com os que vem de “dentro”. Freud aqui inaugura uma curiosa teoria sobre o que anos mais tarde Lacan postularia com os imbricamentos entre o real, o imaginário e o simbólico.O princípio do prazer está em interface com o princípio da realidade. As pistas para isso estão já no abandono da teoria do trauma, na constatação das lembranças encobridoras e das fantasias sexuais das histéricas. Anna O. nos ensinou que nossas memórias não são “arquivos” (assim como o material do sonho) e sim material fantasioso constantemente alterado  pelo  inconsciente, bem como no Caso do Homem Lobo  percebemos que a cena traumática não o é por essência, e sim pode tornar-se traumática  a posteriori  como a cena do coitus a tergo também trabalhada por Zizek no vídeo “A realidade do virtual”.Desta forma não criamos a fantasia para fugir da “real”idade, e sim esta é um artificio inventado para escaparmos de nossas fantasias. É a realidade que  precisa se encaixar nas coordenadas de nosso desejo. Por isso quando a escuridão toma conta de uma sala de cinema e o filme tem início, experimentamos aquilo que Lacan chama de “real”:os personagens são eles mesmos, e não atores, as cenas acontecem sem pensarmos na edição, o que imita sangue é sangue.

A cena polêmica e proibida de um recém-nascido violentado invade o espectador com sua violência absurda e perturbadora, contudo, profissionais de medicina, serviço social ou segurança pública lidam com abusos sexual infantil em seus cotidianos. Não há nada  exibido nos filmes que não seja escutado no consultório, nos serviços de assistência a vítimas de violência, nos hospitais, presídios, enfim na esfera da vida nua ou da vida política (no sentido dado pelo filósofo Giorgio Agamben, 2012).  O “Real” do cinema, paradoxalmente apresenta ao espectador acesso ao próprio imaginário cotidiano. A violência cinematográfica propõe um olhar estético, virtual, que possibilita a análise filosófica de uma realidade de um social, ou, nas palavras de Lacan, um “Outro”.


quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A complexidade do amor livre: versão do diretor




Escrever ou falar sobre amor livre é, como diz o título, uma tarefa complexa. Diz o pensador Edgar Morin que a complexidade, além de referir-se às múltiplas variáveis  e circunstâncias com as quais nos deparamos ao analisar um objeto de conhecimento, também é uma característica das nossas capacidades perceptivas de observadores. Podemos observar um objeto como  unidade ou como complexidade.Amor e liberdade também são palavras, e também são complexos. Todo mundo sabe o que é o amor; o mesmo vale para liberdade.
O amor é um sentimento que todos sentem de alguma forma: por outras pessoas, instituições, causas, teorias, religiões, animais, músicas, bandas de rock, tantos quantos forem os eventos deste nosso mundo humano, todos são amáveis.  O mesmo vale para a liberdade, mesmo para quem vive confinado em uma cela ou vítima da escravidão  a ideia de liberdade existe ao menos como utopia, ou sonho.


Liberdade e Amor, assim, são palavras simples, todo mundo sabe o que elas significam...
Então vamos lá amor é....


Liberdade é...


Quando abandonamos o dicionário e perscrutamos a multiplicidade da experiência humana, é a complexidade que vêm á tona, o simples é complexo e o complexo é simples.
É com tais paradoxos que eu, na condição polivalente de psicólogo, psicanalista e professor, me deparo ao pensar o amor, a liberdade e a combinação destas duas palavras.
Na tarefa de escutar pessoas na clínica os paradoxos já residem  na dualidade entre o singular e o social. Cada sujeito estrutura sua experiência de vida e a expressa pela fala  de maneira única e idiossincrática. Aqui já lanço mão de uma de nossas palavras em debate: liberdade. No consultório todos somos livres para falar, sentir, alucinar, delirar enfim, para sermos quem realmente somos. Nenhuma fala é igual a outra, nenhum universo vivido se compara a outro mesmo que sejam falados pelo mesmo sujeito.
Contudo, mesmo o discurso mais original e singular, ou o pensamento mais íntimo e inconfessável é expresso em palavras, e as palavras fazem parte de uma linguagem, uma língua, um idioma. Quando falamos sempre falamos para  ou de alguém ou algo: de nossos pais, filhos, colegas, cônjuges, do governo, da economia, da cidade, do clube de futebol, da televisão...
A escuta da subjetividade sempre transita hipertextualmente entre o social e individual, o singular e o plural, o simples e o complexo. Uma pessoa pode falar de si mesma usando palavras e  sentidos compartilhados com milhões de outros falantes ou, ao revés, pode referir-se o tempo todo a seus amigos ou a sua família, do trabalho ou da política  quando, na verdade, ninguém além dela mesma  e suas fantasias está ali "fisicamente".
Diz o psicanalista Jacques Lacan que a subjetividade pode ser pensada como a Física Ótica pensa o objeto diante de um espelho: há uma imagem que se forma no cérebro, outra no espelho e ainda outra virtual que é simétrica ao objeto e se forma atrás. Não há imagem sem objeto e não há objeto sem conceito.
Quando estamos nos vestindo para uma festa,olhamos a imagem especular e nos sentimos bonitos ou feios, pensando no comprimento ou na combinação da roupa, e também  nas pessoas que estarão na festa, na temperatura do ambiente ou mesmo na adequação da vestimenta ao nosso contexto histórico e social, o que chamamos de moda. O outro sempre está aí mesmo que sejam os outros "lá fora" ou outro "dentro de nós" ou um Outro abstrato no qual por vezes pensamos sem saber... O "individual" e o "social" não são dicotômicos, e sim dobrados, justapostos.
Pois é daqui que parto para falar do Amor Livre, ou do Poliamor, no contexto das relações conjugais, sexuais e afetivas. Nossos ancestrais que habitam ainda este planeta mesmo depois de três milhões de anos produziram dois padrões de comportamento distintos  que caracterizam duas espécies  muito semelhantes em si e conosco: os chimpanzés, que possuem o cio, são machocêntricos, dominadores, possessivos e competitivos e os bonobos, que  são matriarcais, afetivos e aboliram o cio, ou seja, as fêmeas estão sempre disponíveis para a cópula.Dizem os antropólogos que chimpanzés (chamados de "machos demoníacos" resolvem questões de sexo com poder e bonobos resolvem questões de poder com sexo.A conclusão das pesquisas com grandes primatas é que o homo sapiens herdou muitos comportamentos de seus ancestrais ( a maioria deles), e, como os bonobos, não possui cio.Também herdamos a agressividade e o caráter dominante dos "machos demoníacos", contudo, nosso telencéfalo altamente desenvolvido possibilitou que conseguíssemos, em pouco mais de cem mil anos, produzir uma multiplicidade de modos de conviver e  de se comportar que Bonobos e Chimpanzés jamais sonhariam ( se isso lhes fosse possível).

Não sou muito  afeito a elogiar nossa espécie, mas...

Somos as únicas criaturas vivas capaz de viver em um universo distinto da mera  realidade concreta: o universo do Simbólico que possibilita que nossas  ações sejam atravessadas pela linguagem, a política e a cultura.
Chimpanzés e bonobos podem sentir afetos uns pelos outros no terreno no instinto gregário de sobrevivência, mas a invenção humana do amor contempla infinitos modos de ser e pensar:monogamia, poligamia, celibato, sadismo, masoquismo, amor incondicional, romantismo, tragédia...  O homo sapiens é livre inclusive para determinar a própria restrição a sua liberdade, e ao seu amor.
É preciso compreender (e até mesmo saudar )  a chamada  plasticidade relacional que as sociedades humanas alcançaram especialmente nos últimos duzentos anos. Mesmo nos países e regiões do planeta onde  ainda imperam os  regimes obscurantistas vinculados a religiões ou tradições tribais é possível sonhar com  modos diferentes de amor e liberdade, devido ao processo acelerado de mundialização e da noção, ao menos utópica, de direitos humanos universais.
No brevíssimo intervalo de tempo entre o final dos anos 50 até os dias de hoje o que chamamos de humanidade experimentou transformações nos seus modos de ser e habitar o mundo que conseguiram implodir milênios do império dos "homens demoníacos".É a libertação das mulheres o catalisador da verdadeira revolução sexual, como   narra sexóloga brasileira Regina Navarro Lins.
E aqui cito novamente as ideias de Lacan, que nos anos 70 sincronizou a psicanálise freudiana aos movimentos feministas e produziu duas frases de grande impacto pela sua potência conceitual e polêmica semântica: "a Mulher não existe" e "não existe relação sexual". No caso da primeira, ao investigar o que para Freud seriam os mistérios do gozo feminino, Lacan denota que o que não existe  a "Mulher" com "M" maiúsculo, essa figura que aparece na história das ideias desde Platão como uma espécie  de acidente  evolutivo e cuja função é ser a ressonância ou o mero receptáculo do gozo masculino. A Mulher com maiúscula não é o negativo do Homem com maiúscula, e sim um sujeito cujo gozo é de natureza outra, assimétrica. Tal formulação também elimina o Homem com maíuscula.  Lacan lança mão das funções matemáticas para denotar que cada sujeito é singular como diferentes números atribuídos a uma função matemática.A mulher é uma função distinta da mãe, como o homem é do pai. Mulheres podem ser pais e homens podem ser mães. Isso demonstra nossa total libertação do determinismo tanto biológico quanto cultural.
 E isso nos leva a segunda frase, "não existe relação sexual". desde o século XIX que Freud intuiu a natureza  fantasística da sexualidade humana. Lacan expandiu esta noção afirmando que não é possível relacionar-se sem que o outro se encaixe nas coordenadas de nosso desejo. É aqui que o filósofo Slavoj Zizek sintetiza o pensamento de Lacan, quando trata do nosso despreendimento do físico nas relações contemporâneas:
Diz Zizek:
“Um dos lugares-comuns de hoje é que o chamado sexo "virtual", ou "cibernético", representa uma ruptura radical com o passado, uma vez que, nele, o contato sexual efetivo com o "outro real" perde terreno para o prazer masturbatório, cujo suporte integral é um outro virtual —
o sexo por telefone, a pornografia, até o "sexo virtual" computadorizado... A
resposta lacaniana a isso é que, primeiro, temos que denunciar o mito do "sexo
real", supostamente possível "antes" da chegada do sexo virtual: a tese de Lacan
de que "não existe relação sexual" significa, precisamente, que a estrutura do
ato sexual "real" (do ato praticado com um parceiro de carne e osso) já é
intrinsecamente fantasmática; o corpo "real" do outro serve apenas de apoio
para nossas projeções fantasmáticas. Em outras palavras, o "sexo virtual" em
que uma luva simula os estímulos do que se vê na tela, e assim por diante, não é
uma distorção monstruosa do sexo real, mas simplesmente torna manifesta sua
estrutura fantasmática subjacente”
Da mesma forma que a liberdade é algo que existe para além das prisões e das correntes, o amor é algo que  sempre prescindiu do objeto físico, concreto.
Naquilo que definimos como modernidade ocidental, tanto o amor quanto a liberdade entre os homo sapiens estão submetidos  aos paradoxos da ideologia, da cultura e da singularidade tal como  a regra de Mefistófeles, do Fausto de Goethe: "nós, demonios e fantasmas, estamos submetidos a uma lei: devemos sair pelo mesmo lugar por onde entramos; o primeiro ato é livre, mas somos escravos do  segundo".Somos condenados a incluir sempre no amor, no sexo e na liberdade este grande Outro simbólico, esta narrativa fundante, geradora de conceitos e contratos.
A onda do Amor Livre, ou Poliamor explode em movimentos políticos, na internet, em documentários e surge como grande problemática para aqueles que se dedicam a compreender e escutar a subjetividade humana. Uma problemática mais que bem- vinda, enfim, porque enfatiza, de uma vez por todas que o homo sapiens triunfou, especialmente nos séculos XX e XXI ao  produzir linhas de fuga ao patriarcalismo e ao machismo que durante séculos condenaram simbolica e fisicamente a negação violenta do nosso desejo de amar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Eu não sou professor...



A palavra crise está na moda...
Nos anos 80 o cartunista Angeli criou um personagem de si mesmo, chamado "Angeli em crise", provavelmente para dar conta de produzir cartuns diários e estar submetido ao fluxo intermitente de inspiração...
Depois de 15 anos de meditar profundamente sobre meu trabalho (palavra essa dolorida como o instrumento de tortura que lhe empresta o nome), eu estou um pouco reticente...

Eu sou contra o ensino... Segundo Jacques Ranciere em seu livro "O Mestre Ignorante"   ser professor é viver um conflito diabólico ( diabolos significa dicotomia): explicar vs emancipar, vigiar ou punir, ensinar ou libertar...
A vida de professor universitário e funcionário público é atravessada pela dicotomia conflitiva entre forças instituintes e instituídas, ou entre o nômade e o sendentário. Diz Ranciere:
"Não há ignorante que não saiba uma infinidade de
coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo
ensino deve se fundar. Instruirpode, portanto, significar duas coisas
absolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo próprio
ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forçar uma capacidade
que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as
conseqüências desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se embrutecimento e o segundo, emancipação"

A experiência de ingressar em uma sala de aula  inicia no  vislumbre da disposição disciplinar das cadeiras e das mesas, no quadro negro, no formato de palco italiano (um em pé  e 30 sentados), cada aluno olhando para a nuca do outro e se encerra na absoluta sensação de desamparo quando o professor não fal aem avaliações, pontos, notas e presenças.
Muitos alunos carregam em si esquemas sociocognitivos prontos para obedecer ou para transgredir regras que são tão antigas quanto  a própria escola em si, ainda que muito poucos entre estudantes e professores se apercebam de que esta configuração escolar não é assim tão antiga, o que significa dizer que ela não é natural, eterna, ou em termos mais clichês, ela é socialmente construída. Os modelos institucionais  de aprendizagem universitária são os mesmo da escola padrão em expansão no século XX, funcionam com uma´máquina planificadora: todos no mesmo tempo, na mesma matéria, respondendo ao mesmo exame. E isto é necessário para que nosso trabalho se mantenha ao longo do tempo, assim como precisamos de um corpo metaestável, memórias, histórias de vida, fotografias, etc, do contrário como poderíamos viver ou dizer  simplesmente "eu". A repetição, dizem Deleuze e Guattari, é existencializante, assim com a solidez oferece anteparo, do contrário não conseguiríamos entrar em automóveis, sentar em cadeiras, ou mesmo teclar. Nem a visibilidade seria possível.
Contudo,  excesso de solidez parece gerar nas pessoas o efeito do pássaro na gaiola ou das rodinhas auxiliares na bicicleta. A máquina é mais importante que a vida. Cumprir regras é mais importante que a tarefa para a qual as regras são necessárias. Geralmente, os alunos se preocupam mais com avaliações, créditos, notas, regras do que com a aprendizagem, assim como ficam angustiados quando isso não acontece, afinal, colar na prova, copiar  trabalhos e pedir ao colega que assine a chamada indevidamente são lugares de conforto,  assim como a sociedade não vive sem crime, afinal, sem crime haveriam poucos advogados, policiais e carcereiros, não haveria o direito.
Meu desafio de professor não é destruir o sistema nem construir outro, e sim torná-lo fluido, maleável, multifuncional. Assim como o computador tornou possível  a  manipulação dos textos, sua interatividade e hipertextualidade, mas não acabou com a escrita nem com os livros, imagino que é possível construir uma universidade  que integre o sendentarismo e o nomadismo, na qual os territórios possam acolher mas não aprisionar.

domingo, 15 de novembro de 2015

Do terrorismo ao mar de lama

Poço de petróleo destruído por Saddam Hussein na primeira guerra do Iraque. Foto de Sebastião Salgado.



Agora o que chega na minha time line são conflitos entre a importância do desastre de Mariana vs .os atentados terroristas em Paris. Por acaso tratei deste assunto esta semana neste  blog. A televisão ainda é um dos meios mais importantes de distribuição de enfoques parciais sobre "o que acontece no mundo", e ela é limitada no tempo e no espaço em muitos sentidos, afinal pode exibir apenas uma narrativa por vez, é pautada por seus anunciantes e pelos seus fornecedores de informação.
No caso do tempo, eu mesmo imaginei que o exército israelense e os guerrilheiros palestinos estão todos juntos abraçados em   um auditório assistindo a cobertura dos atentados em Paris, esperando a sua vez de entrar no "palco". Essa é a sensação do espectador médio que observa o mundo pela janela da televisão: o que não está na pauta simplesmente desaparece deste universo para depois retornar quase como novidade. Eu, por exemplo, confesso que ignorava a existência das grandes barragens de lama com rejeitos de minério do Rio Doce até vê-las estourar há poucos dias, assim como não tinha ideia que três dias atrás o exército americano assassinou um dos líderes do Estado Islâmico com um míssil disparado por um drone...
 Para quem não sabe, boa parte do material  exibido no noticiário internacional é "terceirizado", adquirido em pacotes de grandes redes como Associated Press, CNN, BBC, Fox... Quase como uma TV a cabo doméstica.É claro que nos textos adquiridos vem boa boa carga de  realidade produzida ideologicamente, e há no contrato a obrigação de  coloca-los na prioridade na pauta.
Em minha opinião,  o massacre de Paris e o desastre ecológico de Minas Gerais tem como origem evidente o enfraquecimento dos Estados Nacionais característicos do século XXI e a predominância das grandes corporações que administram as riquezas energéticas mundiais. George Bush pai  tornou explícito este enfraquecimento dando início a uma guerra por petróleo no Iraque que seu filho deu seqüencia no mesmo país e depois no Afeganistão (em ambos  o exército foi armado e treinado pelos EUA em outras guerras contra o "comunismo" e a favor do petróleo...).
O Oriente Médio, que já era  um território caótico, virou um barril de pólvora desde então.  O Estado Islâmico, o Talibã e a Al Qaeda são a reação enviesada e truculenta a ocupações ilegais de três países que perderam abertamente sua soberania nacional: Iraque, Afeganistão e Siria.Os atentados de Paris são a ponta do Iceberg destes problemas. A miséria e as guerras tribais são o  mote político e religioso de uma furiosa guerra pelo petróleo desencadeadora de uma das piores distribuições de renda do mundo. Sob o solo árido e abarrotado de petra oleum convivem Emires bilionários com grupos fundamentalistas miseráveis e condenados ao obscurantismo ou ao subemprego como refugiados na Europa.
A desigualdade social é o que une os terroristas islâmicos com os soldados do tráfico em cidades como o Rio de Janeiro como bodes expiatórios do sistema: exclusão, revolta, violência e relações de pertença em um universo subjetivo de poucas perspectivas. Aí talvez resida uma das  muitas razões  pelas quais os atentados de Paris sejam uma notícia  mais palatável do que o desastre de Minas: os terroristas são vilões de carne, osso e máscaras, e boa parte dos telespectadores que consomem notícias ficam satisfeitos com a explicação usual de que a violência no Oriente Médio é causada pelo fanatismo religioso e pela loucura.

No caso do desastre de Minas Gerais o evento em sua aparência imediata tem proporções geológicas e quase divinas. As causas primeiras de tal fenômeno são as mesmas dos atentados: a busca pelo monopólio e pelo lucro de grandes empresas na exploração de recursos naturais não renováveis. No entanto, nenhum grupo terrorista explodiu as barragens e explicar tal fenômeno implicaria em abrir a caixa de pandora da privatização da Vale e todas as violações de leis ambientais ou o lobby das mineradoras sobre os legisladores brasileiros. Aí a piada do mar de lama poderia ter alguma graça se o que aconteceu no Rio Doce não tivesse sido tragicamente tão real.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A realidade é Ontológica



Quem viveu nos anos 70 e 80 no Brasil como eu observa  a era das redes sociais como a verdadeira psicodelia experimentada nas artes do final de uma década anterior ao meu nascimento, os anos 60. Na música “A day in the life”, do  disco Sargent Peppper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, John Lennon e Paul McCartney descrevem harmonicamente um mundo “careta”, sisudo e monocromático  de um inglês comum  que entra em um sonho multifacetado e polifônico. Isso, encontrei a expressão, muito utilizada por Mikhail Bakhtin: polifonia.
No entanto, a polifonia não é de sentidos, como se ainda imaginássemos uma realidade dicotomizada de sua representação. É uma polifonia de realidades.
O biólogo Humberto Maturana, em seu livro “A ontologia da realidade” contrapõe duas noções de realidade. A primeira é a Universal, na qual existe um mundo a ser captado pelos sentidos ou meramente acessível a nossa cognição. A segunda realidade  é a multiversal, cada observador produz em seus domínios seu próprio universo, que transversaliza os demais universos de outros observadores a partir de coordenações, perturbações mútuas, redes de conversações.
Até os anos 90 os meios de comunicação operavam em uma realidade Universal, que o filósofo profeta da Internet Pierre Levy chamou de “um para muitos”. Uma mensagem produzida e meramente transmitida a aparelhos receptores. Levy contrapôs o modelo da transmissão-recepção universal para o de “muitos para muitos”, a utopia da horizontalidade das redes, de um imenso debate em que todos os cidadãos poderiam compartilhar suas opiniões e visões de mundo em uma grande comunidade debatedora.
O Espaço virtual da Internet inaugura a discussão sobre uma "realidade"  ontológica multiversal.  Não há dicotomia entre o "fato" e sua "representação". Contrariamente ao que costumamos vociferar em nossa  esfera virtual é que a "grande mídia"  manipula os "fatos" e seus respectivos "receptores". isso é um engano. O que chamamos de realidade é uma multiplicidade de ideologias, um embate semiótico de ontologias acopladas, ou, como diz Maturana, um multiverso. O que chamamos de manipulação, na verdade é um problema de Ecologia Cognitiva como colocou Gregory Bateson algumas décadas atrás:  os grandes órgãos de imprensa na democracia capitalista tem se comportado como empresas de publicidade querendo vender produtos. A realidade é um produto de massa vendido em larga escala. Nosso conceito de realidade em um mundo globalizado e em rede é o de uma praga de gafanhotos: repetições em larga escala do mesmo quase sem predadores naturais. Não há uma verdade sendo manipulada, há uma ideologia sendo produzida.
"A lição teórica a ser extraída disso é que o conceito de ideologia deve ser desvinculado da problemática "representativista": a ideologia nada tem a ver com a "ilusão", com uma representação equivocada e distorcida de seu conteúdo social". Slavoj Zizek
Assim, contra o horror distópico da produção monocromática de verdade, o próprio antídoto é a a utopia de construir mundos diferentes, aqui e agora. Sem pensamento crítico não há futuros possíveis. 

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Machos Demoníacos





"Até agora todos os seres criaram alguma coisa que os ultrapassou; quereis ser o refluxo dessa grande maré e retornar ao animal, em vez de superar o homem? Que é o símio para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Pois tal deve ser o homem para o Além-Homem: uma irrisão ou uma vergonha. Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, tendes ainda em vós muito do verme. Outrora fostes símios e até hoje o homem ainda é o mais símio de todos os símios. Até o mais sábio entre vós é um ser indeciso e híbrido entre planta e fantasma."
-NIETZSCHE, Assim Falava Zaratustra
Existe uma ideologia muito comum no Brasil que é a pernóstica crítica feita as entidades que defendem os Direitos Humanos. Tal ideologia aparece em programas de rádio e TV e nas mensagens compartilhadas nas redes sociais com frases do tipo "direitos humanos para humanos direitos" ou na queixa de que nenhuma entidade dos direitos humanos defende os policiais e suas famílias quando estes são vítimas de violência. Desde que vivemos em um regime democrático sustentado pela constituição de 1988, nossas instituições policiais tem vivenciado conflitos institucionais entre forças reformistas e e conservadoras, afinal, o Brasil não realizou um julgamento dos crimes cometidos pelas autoridades policiais nos chamados anos de chumbo, fato que disseminou a corrupção e a perversidade nas forças policiais.Os problemas da força policiala no Brasil são ainda agravados pelos baixos salários e a escassos investimentos em qualificação, tecnologia e compromisso ético dos agentes que deveriam atuar para fazer cumprir a constituição para todos os cidadãos e protagonizar a paz. Não é função das forças policiais matar, agredir, produzir terror. A força bruta deve ser utilizada em legítima defesa ou para proteger aqueles que são agredidos.

Em um país com elevados índices de corrupção e violência, no qual aos fatores econômicos e de classe preponderam quando alguém precisa ter acesso a justiça e os mecanismos de investigação e apuração dos fatos são precários, a defesa dos Diretos Humanos é, na verdade, a defesa do direito em si, do contrário é conferido a polícia um poder quase divino de vigiar, julgar e punir.Muitas vezes quem é contra os direitos humanos se imagina acima da lei, e que o crime é atributo de classes inferiores, ou que o mal está sempre "nos outros". 
Neste mês de novembro, em Porto Alegre está acontecendo a Feira do Livro Feminista, evento totalmente independente e auto-organizado para disseminação da discussão sobre o machismo, a homofobia  e a violência contra as mulheres. Na Feira, além da distribuição de livros, acontecem debates, manifestações e eventos artísticos e culturais. No último domingo, durante ao ensaio de uma apresentação artística os vizinhos teriam reclamado do barulho e a  polícia foi chamada
 O que as organizadoras do evento relatam foi que a polícia agiu energicamente e   com ofensas racistas e misóginas, chegando a sacar armas de fogo e agressões físicas. Policiais Militares interviram de maneira truculenta, autoritária e desproporcional, além de destilar preconceitos de gênero contra cidadãs indefesas que não estavam violando nenhuma lei. Mais hedionda é a reação de algumas pessoas nos meios de comunicação de massa e nas redes sociais  que reificam suas posições machistas ou que acreditam que se elas sofreram violência é porque fizeram algo errado, e aí entra a insidiosa ideologia do complexo de Charles Bronson, típico de nossa colonização cultural pelo cinema de massa americano: o policial é sempre herói e sua violência é sempre legitimada, ele pode torturar, matar, acertar inocentes e até mesmo roubar carro mostrando o distintivo. É muito triste quando vemos policiais reclamarem da lei quando dão entrevistas na TV ou no  rádio, dizendo que esta atrapalha seu serviço. Ora se a lei está errada, que tipo de Lei é "legítima? Policiais são servidores públicos e cidadãos como quaisquer outros, com a diferença que o Estado lhes dá poderes e a função de fazer cumprir a constituição. A violência policial e o abuso de poder, na minha opinião, são os piores crimes que podem ser cometidos, pois o policial criminoso e corrupto se equivale a um pai abusador. É alguém que deveria inspirar confiança e proteção, mas perverte suas relações e defende um tipo de classe, raça, crença ou ideologia. Atos como ocorridos no domingo disseminam o medo e o terror e podem gerar conflitos sociais ainda mais radicais.
Tal atitude parece encaixar naquilo que os antropólogos americanos Richard Wrangan e Dale Peterson apresnetam em sua obra "Macho Demoníaco". No livro, os cientistas apresentam descrições impressionantes e desconcertantes de evidências comportamentais evolutivas que demonstram que nós, os “humanos”, somos, na verdade, uma das cinco classes de grandes primatas juntamente com orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobos. A obra dos norte-americanos tem como foco os comportamentos agressivos: infanticídio, estupro, formação de grupos organizados de extermínio, relações de dominância de machos e fêmeas e entre machos.

 Na tese de Whranghan e Peterson os demais grandes primatas (bonobos, orangotangos, chimpanzés e gorilas são mais “humanos” do que imaginávamos e nós, pobres cabeçudos sem pêlo somos quase gêmeos genéticos de chimpanzés e bonobos, uma corda esticada entre o primeiro, um assassino estuprador cruel que resolve questões de sexo com poder e o segundo, um sátiro das florestas, uma criatura dócil, sensual que resolve questões de poder com sexo.
Os chimpanzés são machistas, violentos e ciumentos (a palavra ciúme vem de cio, quando machos enlouquecem com feromônios a ponto de lutar e estuprar). Já os bonobos conseguiram eliminar a tensão do cio, as fêmeas estão sempre disponíveis e suas comunidades são imensos suingues em plena floresta, além de as fêmeas desenvolverem um sistema de cooperação e cuidado intenso dos filhotes que elimina a dominação masculina.
Infelizmente, em nosso país, uma parcela expressiva dos homens que atuam na esfera pública têm agido com o mais violento dos chimpanzés.Eu luto contra isso. E apresento toda minha solidariedade e apoio às amigas  da Feira do Livro Feminista.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O futuro é hoje...


Ainda lembro quando, nos anos 80 eu e meu irmão estávamos em Tramandaí e havia um cinema Drive In (onde a tela ficava em um imenso estacionamento e  captava-se o audio pelo radio do carro). O muro do cinema era baixo e paramos o carro ao lado, podendo ver tudo. O filme era Mad Max, de 1979, estrelado por um ator novato e de olhos intrigantes chamado Mel Gibson.
O filme tratava de uma civilização rumo a decadência e que começava a ser dominada por gangues  de homens  violentos pilotando motocicletas e automóveis envenenados. A ação social naquele futuro distópico  era a luta pela sobrevivência e acontecia na estrada. A função de Max era ser um policial rodoviário em uma sociedade em ruínas e e os imensos trilhos de asfalto estéril pareciam simbolizar o fim de todo tipo de moral ou normativa social. Em Mad Max e em suas duas sequências que encerraram uma trilogia em1985 o diretor George Miller apresentou uma rara sincronia entre argumento e ação, afinal, naquele universo de caos distópico correr ou lutar significavam sobreviver. E a sobrevivência em um clássico futuro distópico cinematográfico gira sempre em torno de comida, armas, máquinas e, principalmente, gasolina.
Em  2015  George Miller retorna ao universo  distópico e o seu taciturno herói é convidado a agir em um ambiente de três grandes simulacros de feudos futuristas (apesar de eu desconfiar que o filme se passa nos dias de hoje, mesmo): os senhores das balas e das armas,  os senhores da  gasolina e  o grande senhor das águas, os mandarins de uma aliança de escambo e exploração da miséria, da ignorância e da escravidão de velhos, doentes, mutantes pós nucleares e, especialmente, mulheres, estas condenadas a serem matrizes e nutrizes do senhor das águas, o tétrico e escatológico Immortan Joe.
Apesar, de ser ingênuo, ao ver "Mad Max: road of Fury", a desconfiança de que ele é um futuro provável para nosso mundo ou talvez seja uma alegoria do presente causou-me calafrios.
Após os "verões do amor"  da esquerda mundial o início da década de 2000 protagonizados pelo slogan "Um novo mundo é possível" do Fórum Social Mundial e da ascensão do metalúrgico Lula e do revolucionário PT ao governo de um país com 500 anos de história autoritária, tenho a sensação de que tudo não passou de um sonho, um engano ou mesmo uma espécie de adolescência política.
Como diz Slavoj Zizek, o capitalismo venceu por promover revoluções  e ciclos adaptativos que nenhum outro sistema ou ideologia conseguiu nos dois últimos séculos. Contudo, como toda realidade  humana, apresenta seu lado obscuro e obsceno, suas arestas inconscientes e  horripilantes: uma massa cada vez maior de miseráveis, analfabetos funcionais, desempregados estruturais, guerras e emergência de fascismos travestidos de ideologia liberal. Movimento Brasil Livre, Bolsonaro, Feliciano e Edir Macedo, Revoltados Online, Tea Party, governos capitalistas antidemocráticos como os da Russia  ou o comunismo capitalista da China mostram a catástrofe política. O aquecimento global a proliferação do lixo  nuclear e não reciclável, o desmatamento crescente e a escassez de água potável parecem não ter remédio ou freio devido às impensadas necessidades de consumo. O mundo de Mad Max é hoje.

E o Caos Reina

sábado, 16 de maio de 2015

A genealogia do Anarquista Ingênuo" PARTE I "Eu me sinto como uma laranja mecânica

“Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessa são os atos. É fácil falar, sobretudo em países onde as forças materiais estão cada vez mais na dependência das máquinas técnicas e do desenvolvimento das ciências.” Félix Guattari

Apenas hoje, 21 anos depois,  consigo fazer a genealogia de minha anarquia ingênua. Eu era um estudante de primeiro semestre do curso de Psicologia na UFRGS e, como é comum quando se tem 18 anos e ingressa em uma máquina acadêmica, eu não sabia muito o que queria com tudo aquilo. Hoje eu digo a meus alunos de Psicologia da Educação que, ao espremermos a escola e a universidade (sim, me arrisco a dizer que são a mesma organização), o que escorre é um caldo azedo de chorume disciplinar, burocrático, vazio de sentido e saturado de mediocridade. O eufemístico slogan do conhecimento sai pela tangente e vai direto ao lixo dos bagaços.
O autor da frase que inicia este texto, Guattari, um dos grandes ativistas da reforma psiquiátrica e do movimento institucionalista, em várias de suas obras compara as instituições a máquinas, derivando conceitos como "máquinas desejantes" "máquinas semióticas", "agenciamentos maquínicos".
Um estudioso e ousado bricoleur  da filosofia, Guattari pensa as instituições- máquinas em dois planos de linhas: as maquínicas e as mecânicas.
As linhas máquinicas são os organogramas, fluxogramas, rotinas, horários, tarefas repetitivas, uma espécie de "hardware" que pode ter expressões abstratas. Os produtos das máquinas mecânicas são os alunos, professores, disciplinas, bibliografias, curriculos, grades de horário, matrículas, regimentos. A linha maquínica da conta da energia pulsional viva: desejos, arroubos de amor e ódio, vontade de saber, transgressões,  temporalidades relativas, resistências, conflitos, revoluções. O mecânico e o maquínico, nas instituições são como as águas turbulentas que ganham forma e movimentam a turbina de uma usina, contudo, nas instituições, tal processo de movimento vs controle acontece pulverizado, cotidiano, abstrato.
Minha opinião anarquista e ingênua sobre nossas Universidades é que  a máquina maquínica parece estar cada vez mais soterrada rumo ao inconsciente institucional. Tal soterramento é tão brutal que, como na primeira tópica freudiana, os recalcados emergem com a força de um vulcão que torna tudo destruidor, obscuro e sintomático.
Vejo isso na angústia de  meus alunos quando, ao dar início a  um semestre, não falo de provas, faltas ou trabalhos, a mesma angústia aparece entre os professores que não sabem outra maneira de construir conhecimento (?) a não ser por estes artifícios que não aparecem em nenhum autor importante da pedagogia. Da mesma forma, os angustiados professores não conseguem parar as máquinas de  suas produções acadêmicas ou do oceano de burocracia. O mal venceu. A categoria que possivelmente mais concentra capital simbólico caiu no espremedor das laranjas mecânicas. 
Nos últimos 20 anos de políticas de ciência e tecnologia e de formação massiva de graduados e pós-graduados, as maiores caixas pensantes brasileiras precisam fazer sexo com hora marcada com suas ideias, precisam produzir para publicar e publicar para produzir, e o contingenciamento de tempo e verbas fez com que sejamos inclusive todos responsáveis pela operação da máquina universitária.
Eu sou mesmo ingênuo e cheguei até a publicar artigos saudando a integração entre ensino, pesquisa e extensão, pois mal eu sabia que tal integração movimenta engrenagens que tornam nosso trabalho intelectual uma façanha quase revolucionária, pois a cada mês, a cada ano a cada biênio somos levados a produzir projetos, angariar bolsistas,  submetê-los a comitê, bancas e a órgãos financiadores, tudo isso em meio a reuniões, colegiados, horas e horas de aulas bimestrais, horários e semestres. Como diz o personagem Alexander The Large do livro "Laranja Mecânica" de Anthony Burgess, um jovem genial  e indomável que é brutalmente subjetivado por todas as instituições socializadoras do Estado "nos sentimos como laranjas mecânicas".
O relógio é uma máquina que virou moda na Revolução Industrial, aliás, o  próprio tempo. Horas-aula, horas-relógio, bimestres, cronogramas, prazos, grades de horário.Ah, as grades de horário... O anarquista ingênuo sempre se sente preso quando usa tal expressão.
Pensamos como máquinas mecânicas,mas as máquinas maquínicas, de algum lugar dos infernos do inconsciente encontram voz, e como estão há anos sendo incubadas, surgem como crianças birrentas e intolerantes.
Freud cunhou a expressão "sua majestade o bebê". A criança pequena não quer saber de tempo e espaço, ela chora e berra quando seu prazer imediato não é satisfeito. 
Os pequenos fascistas dentro de todos nós, que explodem de raiva e ressentimento quando alguma peça não funciona, um comando não é respondido ou a lógica irrefutável da programação é contaminada por algum vírus do imprevisível, do poético ou do revolucionário.


quinta-feira, 14 de maio de 2015

Sou um anarquista ingênuo....

"Não é preciso ser triste para ser militante" diz Michel Foucault em seu manifesto "Por uma vida não fascista", prefácio da obra-rizoma "O Anti-Édipo" de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Nosso amado arquivista calvo também dispara uma frase simples, banal, mas definitiva e que hoje perturba meus neurônios cada vez que  desembarco da nave dos sonhos todas as manhãs para habitar esta realidade semidesperta "não morra de amores pelo poder".
Nesta semana a Universidade Federal do Rio Grande , FURG, local onde tento garimpar pensamentos e explodir mentes em troca da sobrevivência, abriu diminutas brechas em seu cotidiano de aulas, bimestres, notas, burocracias, processos,  arroubos melancólicos de reunite aguda.
Estudantes ocuparam o palácio da reitoria para exigir direitos, esquerdos e um pouco de centralização. A Universidade Pública passa pelo mesmo processo que muitas favelas: remover pessoas com garantias  futuras de direitos e estruturas em um terreno isolado e saturado e, como a mãe primordial , remove o seio da boca da criança provocando-lhe angústia. Mas, ao contrário do que muitos pretensos "adultos" imaginam, as crianças não sabem só chorar, sabem agir, perturbar, balbuciar algo mais que  meros queixumes.
Minha espada afiada de mestre ignorante foi forjada por uma inquietação sobre o movimento estudantil, em minha época uma mera reprodução do movimento sindical; engessado, aparelhado, triste...Sempre pensei que a ação política deveria ser movediça, cotidiana, energética, rompedora...
E agridoce fiquei na reunião de minha própria categoria, que terá mais detalhes em minha próxima postagem (escrevo essa na ansiedade infantil de inaugurar o blog...)
Lembrei do filme iconoclasta "A Vida de Brian" : quando Brian, um simulacro cômico de Cristo, está para ser crucificado, sua namorada  recorre desesperadamente para seu movimento social, que naquele momento está em reunião. A despeito do desespero e da morte iminente de um de seus membros, o grupo aceita incluir na pauta de informes e registrar uma moção  de apoio  ao companheiro que se sacrificará pela causa.
Enquanto os estudantes protagonizavam um ato de galhardia e sacrifício, meus colegas sindicalistas ostentavam currículos invejáveis de lutas, e após constatarmos que nosso país quer nos crucificar, o ponto culminante da discussão foi.... se os não sindicalizamos tinham ou não direito ao voto, pois, na opínião de um colega, aquelas pessoas que estavam ali por livre e galharda vontade de ajudar e promover nossa causa pudessem votar, o resultado seria caos e anarquia...
Lembro sempre quando algum aluno da FURG que não está  matriculado em minha disciplina (?) pede educadamente para assistir minhas aulas e eu respondo sempre "ora, se nós precisamos de chamada, bimestre e provas para obrigar nossos alunos a frequentarem as aulas,  porque eu impediria o desejo espontâneo de saber?" . Mas, enfim, eu sou um anarquista ingênuo....