Não fuja da luta, covarde

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Empate

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

As crônicas invisíveis parte 2 A captura do Beija-Flor

 


Olá, Invisíveis

Hoje a manhã foi gloriosa: sol intenso, mar azul turquesa, vento, praia com uma população suportável para meu padrão Palomar ( ver livro de Italo Calvino sobre um veranista neurótico e taciturno).

Estou na beira da praia expondo minha pele desprovida de pigmentos a intensa radiação solar e o raro silêncio ao meu redor e meu imenso chapéu de palha permitem que eu me concentre profundamente em minha leitura. De repente sinto uma presença e ouço uma voz:

-Senhor

Me fiz de desentendido como faço sempre com alguns vendedores ambulantes ou chatos que às vezes interrompem minha meditação, leitura ou treino de Kung Fu. Ontem mesmo eu estava praticando meu Tai Chi e uma mulher bêbada surgiu do nada perguntando “posso me juntar a você”? O que me obrigou a lançar mão da antipatia típica dos antigos mestres e rosnar “não, isso demora anos para aprender”.

Mas o rapaz insistiu. Desenterrei a cara do chapéu e do livro olhei para ele com uma de minhas piores caras (mesmo meu olhar simpático já assusta um pouco). Ele usava um uniforme, e nas mãos tinha uma engenhoca daquelas de sugar areia e um imenso cardápio.

-Senhor, desculpe atrapalhar

-Sim, atrapalhou

Ele ficou um pouco desconcertado mas seguiu firme “ o sr gostaria de comer algum petisco”?

Para quem não conhece a Praia da Palmeira, especialmente a Praia do Alto (uma agradável e pequena enseada tranquila e de mar calmo), o Beija Flor é hoje o único bar do balneário, daqueles típicos do litoral catarinense: mesas na areia com guarda-sol, cervejinha gelada, peixe frito e aquele clima solar. Imaginem o final de um dia de praia, a pele queimada após o banho e uma porção de peixe frito com uma cerveja mirando o por-do-sol. E o melhor: o repertório musical  é um oásis sonoro em meio a funks, sofrências e terremotos de carros de som. Uma imensa caixa de som dispara Raul Seixas, Pink Floyd, TNT, Led Zeppelin, Tim Maia, Janis Joplin e até Deep Purple.

Mas onde estou mesmo?

Ah, sim, o rapaz.

O Beija-flor é um bar de pescadores e surfistas, e guarda uma certa tradição na praia. Alguns clientes mais assíduos costumavam instalar seus guarda-sóis e cadeiras e pedir sua comida e sua bebida no bar, e os garçons faziam a gentileza de levar e buscar, se o cliente estivesse próximo.

Porém este ano aconteceu algo diferente. Talvez o bar tenha mudado de dono, ou este tenha contratado uma consultoria do Sebrae, ou simplesmente a teoria dos genes egoístas encontrasse finalmente sua comprovação, e o empreendedor que existe em nós desde o Plestoceno tenha encarnado na equipe e engendrado uma ideia que tornaria o Beija Flor o pterodáctilo da praia, um predador sem predadores, o exterminador de vendedores de queijo coalho e milho-verde.

No primeiro dia de praia eu já havia notado as bandeirinhas numeradas ao lado das famílias de banhistas e os jovens correndo de um lado com cardápios e para o outro com bandejas cheias de batatas fritas ou isopores com cervejas. Agora os garçons do Beija-Flor percorrem a praia de ponta a ponta oferecendo os serviços do bar, e para facilitar a localização instalam bandeirinhas numeradas junto aos clientes. Seguindo a velha sina da sociedade industrial capitalista, as relações de amizade e gentileza entre o bar e seus clientes assíduos foi substituída pela administração estratégica, metódica e científica, e Beija -Flor agora havia sido capturado pelo Taylorismo fordismo e pelo inevitável expansionismo neoliberal. Agora toda praia é virtualmente um território do passarinho.

E ali estava eu diante daquele jovem, pensando em como ele havia sorrido e pedido desculpas mas por dentro deveria estar morrendo de raiva de mim, afinal, eu, um homem branco em férias, além de recusar seu serviço, ainda o respondia com um certo tom grosseiro. Mas que diabos, eu estava ali lendo meu livro com atenção, e interrompeu mesmo depois de eu dar sinais de que não estava interessado. Eu pensei por alguns segundos em dizer “meu filho, eu sou psicólogo e posso te dar dicas sobre como ser um bom vendedor: preste atenção no seu cliente, nos sinais que ele dá. Se eu estivesse de bobeira olhando para o mar não haveria nada de mal em me abordar, mas eu estava concentrado em uma leitura...

Então lembrei do livro que estava lendo “ Genética neoliberal”, onde a antropóloga Susan McKinnon faz uma análise desconstrutiva das ideologias capitalistas subjacentes às teorias supostamente científicas da psicologia evolutiva, que postulam basicamente que nosso comportamento é comandado por nossos gens, e tais genes tem como objetivo sobreviver, conquistar, competir.

Então, ali estava um jovem lutando pela sobrevivência, provavelmente ganhando comissão, em um trabalho temporário, precário, e mal pago em plena pseudo-pós-pandemia em um país de desemprego massivo e nenhuma política de proteção. Que diretriz seus genes deveriam tomar? Ser sensível a um cliente de comportamento fora da curva ou manter a diretriz de abordar todos os banhistas da praia? E eu? Devo levar em conta todas as precariedades  e dificuldades daquele jovem e ser mais educado e solícito, abrindo mão de minha leitura ou sustentar uma postura de enfrentamento e resistência ao sistema capitalista neoliberal, afinal, ambos somos trabalhadores e ambos estamos torrando sob o sol  e submetidos, cada qual com seu quinhão, a exploração do trabalho e apropriação da praia pública pelo dono do estabelecimento?

Aqui me subscrevo as ideias apresentadas por Vladimir Safatle no livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” quando ele diz que o pré-requisito para o sistema capitalista neoliberal funcional é um regime autoritário. No regime do passarinho Hegel me diz que o menino é obrigado a interromper minha leitura, e eu sou obrigado a recusar sorrindo e agradecido.

Não sei quanto a vocês, mas a expressão “ele está apenas fazendo seu trabalho” me lembra algo..

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

As peles que me habitam ou sobre a tatuagem (Por Fábio Dal Molin)


 

Sou um adepto da arte da tatuagem desde os 17 anos e já experimentei todos os possíveis sentidos e sensações de imprimir desenhos na carne. Minha primeira experiência foi impensada e intuitiva. Em 1992 eu tinha cabelos compridos e fazia parte da cultura Heavy Metal de Porto Alegre. Naquela época apenas punks e headbangers tinham tatuagens e conheci um sujeito que em pouco tempo virou meu melhor amigo. Ele era uma das poucas pessoas que tinham os braços cheios de tatoos, era muito inteligente, culto e sensível, não bebia nem fumava apesar de que seu visual na época parecia demonstrar o oposto. "O discurso que não era semblante", parafraseando Lacan no seu seminário 18, enfim, o que cconhecemos de uma pessoa às vezes é apenas nosso olhar (seminário 11) e a luz que reflete dela. O resto é embaixo da pele.
Meu amigo me levou ao estúdio do Frank Tatoo, um sujeito careca com roupas de couro, o estereótipo do tatuador oficial dos Hell 's Angels. Um cara grosseirão e espontâneo. Meu amigo foi lá para agendar uma sessão. Eu fiquei obcecado com aquilo. Naquela época os estúdios de tatuagem eram abertos e tinham vários catálogos espalhados. Peguei um deles e olhei as tatoos menores. Vi uma aranha bem pequena e perguntei o preço. Era algo tipo 50 reais. Esvaziei meus bolsos e fiz ali, na hora, em 20 minutos, sentindo a ´pior dor da minha vida, sem imaginar todas as consequencias, afinal para a maioria de nossas experiências somos como crianças que vivem no mundo da fantasia. No meu caso achava que era só pintar a pele e tudo terminava.... Sua majestade o bebê.
Foi a maior e mais radical experiência da minha vida, aos 17 anos experimentei a injunção, a fase fálica, eu me inscrevi no mundo dos cabeludos tatuados rebeldes, marinheiros, motoqueiros, músicos de banda. Eu era imortal. Minha sensação de poder aumentou quando uma menina apareceu no estúdio enquanto eu sofria as agulhadas e perguntou de valores e horários. Frank perguntou a idade dela (14). Então ele disse que menores de 18 precisavam de documento de identidade e a autorização dos pais. A menina foi embora meio decepcionada enquanto eu estava bem quieto e sorridente sendo desenhado aos 17 anos. Uma semana depois tive um problema de pele e cortei o cabelo... No mesmo dia peguei minha coleção de discos de vinil e vendi. Com o dinheiro fui a outro tatuador lendário, Marcos, e realizei um velho sonho: tatuar o anjo caído, o selo da gravadora Swann Song do Led Zeppelin, minha banda favorita. 3 horas de dor e sangue e em menos de duas semanas eu já tinha duas tatoos, que fizeram sutura do luto do cabelo comprido.
No filme "O livro de cabeceira" de Peter Greenaway, a personagem principal tem uma compulsão por pintura a tinta no corpo que a fazia reinscrever constantemente um ritual edipiano criado por seu pai. No fim do livro, após realizar o desejo de matar seu amante-pai-imaginário, a personagem entra no registro do mundo adulto gerando um filho, e suas pinturas transitórias são substituídas por tatuagens orientais tradicionais. Na cena final ela amamenta seu filho exibindo os braços "fechados", uma tradição japonesa de saturar cada centímetro de pele.
A tatuagem para mim representou uma marca.
É muito difícil explicar de fato o que é o processo, mas ele é absolutamente singular e idiossincratico, e representa muito mais do que desenhar na pele. Eu li poucos ensaios psicanalíticos sobre tatuagem, a maioria de pessoas que nunca experimentaram as agulhas elétricas e produziram textos teóricos, vagos, preconceituosos...A exceção é minha amiga e colega Heloisa Helena Marcon, que nos traz esse belo texto, É claro que ela também é uma adepta dessa nobre arte
https://appoa.org.br/uploads/arquivos/correio/correio182.pdf

Os melhores trabalhos sobre o assunto vem da antropologia, de estudos etnográfico sobre como as pessoas dão sentido aos seus desenhos, e como as culturas se modificam e também engendram novos sentidos. Quando fiz minhas primeiras tatoos eu as exibia como orgulho da rebeldia adolescente, minha mãe odiou, passou a me ver como um corpo estranho (isso talvez me tenha catapultado do Édipo), as pessoas me paravam na rua para me perguntar se eu não me arrependeria. Eu cultivava ódio e discriminação, mas também temor e admiração.
Nesses 29 anos já experimentei a rebeldia da adolescência quando Porto Alegre tinha apenas cinco tatuadores, e minhas duas primeiras foram sem luva e sem curativo..
Muita dor e sangue.
Eu voltei a me tatuar depois dos 30 e aí virou uma body art, já escolhi desenhos por sua beleza e história, mas também já me submeti a arte dos tatuadores
Hoje experimento a tatoo como um ritual de criação, recriação, dor, cura,.morte e ressurreição.
Freud, na sua "introdução ao narcisismo" trata da impossibilidade de nosso corpo ser experimentado sem a representação, sem esse olhar do Outro, sem esse eu que olha para si mesmo e em uma segunda instância se engendra na interface de ser olhado. Quando temos uma dor de barriga pensamos imediatamente na palavra dor e na palavra barriga e logo fantasiamos sobre gastrites ou gases. A tatuagem representa um tipo de trabalho sublimado e encarnado dessa construção de sentidos. Com os anos as tatoos vão circulando entre o real, o imaginário e o simbólico. Hoje eu as vejo como roupas inversas, que posso vestir ao desnudar e esconder ao vestir.
No japão os membros da Yakuza chergam a tatuar 100 por cento do corpo, e no cotidiano o mantém coberto de terno e gravata. Eu também posso fazer isso. Posso provocar no outro a fantasia de que minha pele é limpa e incólume, e desnudá-la aos poucos. Assim é com todo o resto, não?
A pele é nosso órgão mais profundo, diz Paul Valery.

Desde o momento que a tatoo é pensada e imaginada até a última agulhadas, nosso corpo nunca mais será o mesmo, mais do que uma prótese, a tatuagem inaugura um novo esquema corporal.

Na última sexta fiz minha décima sexta tatuagem minha primeira no estilo old school ( que, 40 anos atrás não existia porque simplesmente era "a tatuagem") e fui pesquisar as últimas tendências no processo de cicatrização, e para minha surpresa a tatuagem ainda permanece um mistério. Não é nem uma ferida nem uma assadura e a bula da pomada diz " siga as instruções do tatuador ".

Agora posso dar dicas de como proporcionar uma boa experiência de cicatrização.
Em primeiro lugar reserve um turno para fazer a tatoo. Um bom tatuador não irá simplesmente desenhar no seu corpo. Há uma ciência específica de forma, sombra, ângulo e transposição do desenho para a pele. O tatuador experiente injeta tinta antecipando seus efeitos futuros até mesmo depois da cicatrização.
Também recomendo fazer na sexta ou fim de semana e se programar para descansar,.porque a tatoo incha, sangra dói,.demora, é cansativo. Eu não recomendo analgésicos . Como diz Tyler Durden: esse é o grande momento da sua vida,.não desperdice.
Além disso a dor aumenta a inexplicável sensação de prazer de ver o " trampo" pronto, tinindo,cheio de cor e que será o resto da vida da nossa pele.
Nas minhas primeiras tatoos ganhei um pedaço de papel escrito " vasenol" e só.
Anos depois estranhei o curativo feito com insufilm e o uso de pomadas como bepantol.
Mas minha última pesquisa me fez experimentar uma técnica definitiva e a tatoo está cicatrizando bem rápido. Ah, e o bepantol não estraga a tatoo nem remove pigmento. Isso é lenda urbana de quem não cuidou direito ou foi a um tatuador inexperiente ou que usou materiais inadequados. Muitas vezes os leigos se deslumbram com qualquer um que compra uma máquina e sai fazendo decalques.
O Bepantol ou bepantriz é uma pomada para assadura. A tatuagem recem feita é algo entre um esfolão e uma assadura. Parafraseando Lacan, a tatoo é lituraterra, é traço unário, é um sulco na pele, é o espaço entre, a lamela....
A agulha injeta tinta na segunda camada da pele e remove a primeira,.mas rompe apenas a circulação mais superficial. Por isso as vezes nem sangra.
Então é fundamental que a tatoo recém feita seja apenas lavada com sabão neutro ou bactericida e envolvida em filme plástico três vezes por dia para evitar infecção e também para que os próprios fluidos corporais a hidratem. Plástico também protege dos atritos
Depois de 3 a cinco dias o corpo já cria uma camada de proteção ( como a das queimaduras solares) e então é a hora de usar e abusar da pomada cicatrizante até a casca cair toda. Isso irá manter a pele hidratada e renovada . Depois da casca cair e a pele nova se consolidar então é a hora de usar um bom hidratante e evitar insolação por pelo menos um mes..
A dica de sempre é: economize dinheiro e tenha bom gosto, tatoos pequenas não podem ter muitos detalhes e tatoos grandes demoram e precisam ser bem pensadas.
A trilogia é : dói, é caro e não sai.
Fique longe do amigo que quer te tatuar de graça. A pele é um bem durável.
Olhe o portfólio de seu tatuador e procure ver se ele já participou de convenções. Eu já me tatuei em duas e uma ganhou prêmio.
É do nosso corpo que falamos
A foto acima é de de minha última tatoo, de autoria e agulhadas do Eduardo Reis, meu velho parceiro, da Tatuaria Reis, na Coronel Genuíno 201, Centro Histórico.