Olá, Invisíveis
Hoje a manhã foi gloriosa: sol intenso, mar azul turquesa,
vento, praia com uma população suportável para meu padrão Palomar ( ver livro
de Italo Calvino sobre um veranista neurótico e taciturno).
Estou na beira da praia expondo minha pele desprovida de pigmentos
a intensa radiação solar e o raro silêncio ao meu redor e meu imenso chapéu de
palha permitem que eu me concentre profundamente em minha leitura. De repente
sinto uma presença e ouço uma voz:
-Senhor
Me fiz de desentendido como faço sempre com alguns
vendedores ambulantes ou chatos que às vezes interrompem minha meditação,
leitura ou treino de Kung Fu. Ontem mesmo eu estava praticando meu Tai Chi e
uma mulher bêbada surgiu do nada perguntando “posso me juntar a você”? O que me
obrigou a lançar mão da antipatia típica dos antigos mestres e rosnar “não,
isso demora anos para aprender”.
Mas o rapaz insistiu. Desenterrei a cara do chapéu e do
livro olhei para ele com uma de minhas piores caras (mesmo meu olhar simpático
já assusta um pouco). Ele usava um uniforme, e nas mãos tinha uma engenhoca
daquelas de sugar areia e um imenso cardápio.
-Senhor, desculpe atrapalhar
-Sim, atrapalhou
Ele ficou um pouco desconcertado mas seguiu firme “ o sr
gostaria de comer algum petisco”?
Para quem não conhece a Praia da Palmeira, especialmente a Praia do Alto (uma agradável e pequena enseada tranquila e de mar calmo), o Beija Flor é
hoje o único bar do balneário, daqueles típicos do litoral catarinense: mesas
na areia com guarda-sol, cervejinha gelada, peixe frito e aquele clima solar.
Imaginem o final de um dia de praia, a pele queimada após o banho e uma porção
de peixe frito com uma cerveja mirando o por-do-sol. E o melhor: o repertório
musical é um oásis sonoro em meio a funks, sofrências e terremotos
de carros de som. Uma imensa caixa de som dispara Raul Seixas, Pink Floyd, TNT,
Led Zeppelin, Tim Maia, Janis Joplin e até Deep Purple.
Mas onde estou mesmo?
Ah, sim, o rapaz.
O Beija-flor é um bar de pescadores e surfistas, e guarda
uma certa tradição na praia. Alguns clientes mais assíduos costumavam instalar
seus guarda-sóis e cadeiras e pedir sua comida e sua bebida no bar, e os
garçons faziam a gentileza de levar e buscar, se o cliente estivesse próximo.
Porém este ano aconteceu algo diferente. Talvez o bar tenha
mudado de dono, ou este tenha contratado uma consultoria do Sebrae, ou
simplesmente a teoria dos genes egoístas encontrasse finalmente sua
comprovação, e o empreendedor que existe em nós desde o Plestoceno tenha
encarnado na equipe e engendrado uma ideia que tornaria o Beija Flor o
pterodáctilo da praia, um predador sem predadores, o exterminador de
vendedores de queijo coalho e milho-verde.
No primeiro dia de praia eu já havia notado as bandeirinhas
numeradas ao lado das famílias de banhistas e os jovens correndo de um lado com
cardápios e para o outro com bandejas cheias de batatas fritas ou isopores com
cervejas. Agora os garçons do Beija-Flor percorrem a praia de ponta a ponta
oferecendo os serviços do bar, e para facilitar a localização instalam
bandeirinhas numeradas junto aos clientes. Seguindo a velha sina da sociedade
industrial capitalista, as relações de amizade e gentileza entre o bar e seus
clientes assíduos foi substituída pela administração estratégica, metódica e
científica, e Beija -Flor agora havia sido capturado pelo Taylorismo fordismo e
pelo inevitável expansionismo neoliberal. Agora toda praia é virtualmente um
território do passarinho.
E ali estava eu diante daquele jovem, pensando em como ele
havia sorrido e pedido desculpas mas por dentro deveria estar morrendo de raiva
de mim, afinal, eu, um homem branco em férias, além de recusar seu serviço,
ainda o respondia com um certo tom grosseiro. Mas que diabos, eu estava ali
lendo meu livro com atenção, e interrompeu mesmo depois de eu dar sinais de que
não estava interessado. Eu pensei por alguns segundos em dizer “meu filho, eu
sou psicólogo e posso te dar dicas sobre como ser um bom vendedor: preste
atenção no seu cliente, nos sinais que ele dá. Se eu estivesse de bobeira
olhando para o mar não haveria nada de mal em me abordar, mas eu estava
concentrado em uma leitura...
Então lembrei do livro que estava lendo “ Genética
neoliberal”, onde a antropóloga Susan McKinnon faz uma análise desconstrutiva
das ideologias capitalistas subjacentes às teorias supostamente científicas da psicologia
evolutiva, que postulam basicamente que nosso comportamento é comandado por
nossos gens, e tais genes tem como objetivo sobreviver, conquistar, competir.
Então, ali estava um jovem lutando pela sobrevivência,
provavelmente ganhando comissão, em um trabalho temporário, precário, e mal
pago em plena pseudo-pós-pandemia em um país de desemprego massivo e nenhuma
política de proteção. Que diretriz seus genes deveriam tomar? Ser sensível a um
cliente de comportamento fora da curva ou manter a diretriz de abordar todos os
banhistas da praia? E eu? Devo levar em conta todas as precariedades e dificuldades daquele jovem e ser mais
educado e solícito, abrindo mão de minha leitura ou sustentar uma postura de
enfrentamento e resistência ao sistema capitalista neoliberal, afinal, ambos
somos trabalhadores e ambos estamos torrando sob o sol e submetidos, cada qual com seu quinhão, a
exploração do trabalho e apropriação da praia pública pelo dono do
estabelecimento?
Aqui me subscrevo as ideias apresentadas por Vladimir Safatle
no livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” quando ele diz que
o pré-requisito para o sistema capitalista neoliberal funcional é um regime
autoritário. No regime do passarinho Hegel me diz que o menino é obrigado a
interromper minha leitura, e eu sou obrigado a recusar sorrindo e agradecido.
Não sei quanto a vocês, mas a expressão “ele está apenas
fazendo seu trabalho” me lembra algo..