Não fuja da luta, covarde

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Empate

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A Universidade, a Escola e a Ideologia na Educação

Sexta-feira pela manhã o Campus da FURG de São Lourenço do Sul promoverá um debate sobre Escola Sem Partido.
Eu tenho algumas contribuições para o debate após 22 anos de Universidade Pública como aluno, militante pesquisador e educador. 
Antes de mais nada é preciso dizer que são raras as instituições educativas de ensino superior conhecidas por mim que se propuseram a bancar o debate a respeito das práticas docentes e suas propostas pedagógicas, o a democratizar a horizontalizar as relações entre professor e aluno, a democracia, a participação e uma ideia mais complexa de gerenciamento.
As Universidades em geral reproduzem as metodologias das Escolas ditas tradicionais em termos de ensino e das fábricas e empresas em termos de gestão: avaliações bimestrais, chamadas, tarefas, relações hierarquizadas entre professor e aluno, burocratização, trabalho alienado e pouco espaço de debates acadêmicos.
Pensado utopicamente como uma proposta de abertura e integração da Universidade com a comunidade, o tripé ensino-pequisa-extensão coloca docentes e discentes em uma grande e interminável gincana produtivista. Atividades que não fazem parte do currículo e não se convertem em projetos inscritos em sistemas não existem, e o trabalho de sala de aula torna-se invisível e penoso para alguns.
É daí que surgem minhas críticas, pois sou professor de Psicologia da Educação e carrego em meu trabalho um forte viés filosófico e pedagógico de matriz libertária e crítica, com Deleuze, Foucault, Piaget, Jaques Ranciere e Paulo Freire. Minha luta é sempre bater de frente com a assimilação universitária do que Freire chama de ensino bancário não apenas no campo teórico, e sim na prática. Eu não sei como são outras áreas do saber, mas no meu caso é impossível trabalhar nesse viés sem experimentá-lo, sem provocar estremecimento e forçar o pensamento crítico.
Aprendi com o filósofo Slavoj Zizek que a ideologia não é algo que é ensinado ou discursado. A ideologia é algo que está enraizado na prática cotidiana, nos modos de existência, na própria estrutura da realidade vivida. Aquilo que entendemos como doutrinação ou "ideologia" no senso comum ou aquilo que o Escola sem Partido tenta combater é o que chamamos de "crítica a ideologia", algo muito pouco exercido pela maioria dos educadores, em especial na Universidade.
O mais pernóstico do Escola sem Partido é justamente não saber o que se passa na realidade Escolar e Universitária, onde Paulo Freire, pedagogo tão odiado por seus idealizadores, é apenas um nome que surge no máximo utopicamente. A verdadeira ideologia da Educação Brasileira é, e sempre foi, o sonho da direita contemporânea: muito trabalho vazio, produtivismo e pouca reflexão crítica.
Não é a toa que chegamos a um ponto que boa parcela da população brasileira acredita em tudo que vê na TV ou no facebook como se fosse verdade, apoia o fascismo, é contras os trabalhadores e somos campeões em acidentes de trânsito, corrupção e homicídios.

sábado, 21 de maio de 2016

"A onda:" , o desejo e a tragédia de ser professor e o totalitarismo recalcado na democracia


"A Onda" é um filme alemão produzido em 2008 e é inspirado na experiência de um professor de história Americano de Palo Alto que, através de exercícios e dinâmicas, consegue induzir em seus alunos comportamentos típicos da Autocracia nazista.

Heiner Wenrger é um professor que usa jaqueta de couro e camiseta de banda, morou em ocupações e é um ativista político anarquista, Aqui já começamos a pensar no paradoxo de ser professor e anarquista e nos deparamos com aquilo que Freud postula da impossibilidade de educar, governar e  curar.  Ser professor e anarquista  é um ofício cuja utopia mantém uma distancia segura do objeto do desejo e o mantém como verbo intransitivo. Wenger, na experiência da Onda depara-se com o encontro paradoxal com a utopia e a morte do desejo. A experiência educativa da autocracia torna-se insuportavelmente plena e bem-sucedida, provocando nele um gozo insustentável que o conduz a um destino trágico como Édipo, que procura a si mesmo e se defronta no fim da história com o horror do encontro..No caso específico da educação, tal prática pressupõe um encaixe perfeito entre o desejo do  emissor e do receptor. O desejo, para Lacan, denota falta da falta, desejar é um verbo intransitivo, o desejo é sempre de desejar. , diferente da ordem possível do querer. Heiner Wenger quer ser professor de anarquia, mas uma interdição a partir de um colega mais velho e que encarna o "pai professor" o condena a ensinar sobre autocracia, ou seja o oposto sintomático da Alemanha. Quando não consegue o que quer, Wenger acaba se encontrando com aquilo que deseja: o amor, a obediência e a eficácia. Os alunos aderem ao projeto da "Onda" com uma paixão jamais vista na Escola. O professor obtém aquilo que parece impossível: a plena experiência do encontro educativo.  O encontro com o objeto de desejo é insuportável pois representa a morte, ou a tragédia inexorável como é conduzido o fim do filme.


Na versão americana de 1981, mais simples, concisa e menos carregada de detalhes e emoções, o professor é mais "careta" e a experiência da Onda é menos radical, mais racional e é encerrada didaticamente (o personagem "nerd" sofre mas se conforma  e é consolado pelo professor, como bom neurótico, ao contrário do personagem alemão que aceita a experiência como a sua própria vida)

o jovem aceita a ideia da onda plenamente como este Outro maior do que eu e o professor, e não a arma, dispara o tiro mortífero ao invadir o sonho alheio e dizer que com a morte do líder a onda morreria.
Em uma leitura sintomática, já elaborada nas muitas interpretações da experiência de Palo Alto e das duas películas que lhe fazem referência, "A onda" é vista como  um alerta para os perigos da emergência do fascismo nas democracias contemporâneas, e parece se encaixar perfeitamente no momento da esfera política brasileira. Contudo isso é uma visão apenas parcial. É claro que, parafraseando Slavoj Zizek nas sua obras " Guia do perverso sobre ideologia" e "Alguém disse totalitarismo?" os elementos ideológicos  do fascismo aparecem, recalcados e pulverizados nas democracias liberais capitalistas, e isso é evidente no Brasil: a eterna guerra contra um inimigo comum (comunismo, terrorismo, petismo, islamismo, criminalidade), inflação, desemprego e movimentos nacionalistas (protestar usando as cores do país é uma antiga prática integralista. No entanto, os elementos protofascistas  não representam uma ameaça a democracia, e isso centraliza o debate atual sobre a deposição da presidente Dilma. O impeachment é ou não é constitucional, é ou não é um golpe, é ou não é democrático.
É claro que é democrático! Mas, como disse uma vez José Saramago em aula magna na UFRGS, se existe algo que não se discute é a democracia, ou seja ela é entendida como clausula pétrea, intocável, absoluta e parece ser a panacéia de todos os problemas do mundo contemporâneo. Outro pensador português, Boaventura de Souza Santos diz que o casamento do Estado Moderno, da Democracia e do capitalismo provocaram uma espécie de privatização da esfera pública, evidenciada pela predominância da propaganda política, dos financiamentos de campanha e da concentração da ação política na esfera partidária. Trocando em miúdos, Boaventura acerta sua análise diretamente no alvo quando diz que o cidadão médio do mundo capitalista  encontra sua participação  política única e exclusivamente no ato de votar, denegando todas as outras: hábitos de consumo, ação nas esferas da educação e do trabalho, debate daquilo que é exposto nos grandes meios de comunicação, etc.
Em termos psicanalíticos, a democracia capitalista captura o sujeito na esfera simbólica das preocupações cotidianas de uma espécie de eterno presente: o dólar, a bolsa, o emprego, a criminalidade que irrompe na vizinhança outrora imaculada. O exercício da utopia, essa busca por uma outra realidade, o sonho, o exercício de outros possíveis  é amputada e sua lacuna é preenchida por um universo de pura reação. Reação é uma expressão do sintoma e "reacionário" um sinônimo de fascista, nazista, conservador, aquele que age e irrompe em ódio e violência  para que, no fim, as coisas permaneçam como estão, daí a polêmica declaração de Zizek na qual ele diz que Ghandi foi mais violento que Hitler. O nazismo nada mais foi que uma virulenta reação de manutenção do eixo do poder higienista e capitalista no século XX e findou por colocar boa parte do mundo ocidental como refém dos "vencedores", delegando às democracias liberais o papel de guardiãs da liberdade e da inclusão.
E aqui encontramos  a verdadeira razão do "locus" cinematográfico das duas versões de "A onda": os EUA no início doas anos 80, no auge da democracia liberal e a  Alemanha do século XXI, principal potência capitalista européia e através de políticas e imigração e desenvolvimento parecia ter enterrado os fantasmas do nazismo para sempre.

terça-feira, 15 de março de 2016

Memórias póstumas de um zumbi ingênuo





Hoje é 15 de março de 2016 e a esfera pública brasileira convulsiona em uma guerra política, ideológica e informática. Neste momento todos os periódicos do Brasil, impressos, televisivos ou eletrônicos apresentam a delação de um Senador que é o símbolo daquilo que os analistas chamam de fisiologia política. Delcídio pe um daqueles políticos que se adaptou perfeitamente àquilo que se chama eufemisticamente de governabilidade (não confundir com a governamentalidade de Foucault. Aliás, aproveito que citei o grande pensador francês para citar outra obra famosa "Vigiar e Punir", na qual ele apresenta as horripilantes descrições dos grandes espetáculos punitivos  que preexistiram as penas disciplinares  até meados do século XIX. Em muitos dos suplícios, os condenados tinham que ser amordaçados ou ter alguma espécie  de freio na língua porque as autoridades eclesiais e feudais temiam que, à beira da morte inevitável, falassem livre e irresponsavelmente ou blasfemassem.Sim, meus caros, os supliciados, por vezes, eram delatores não premiados. Pois nosso caríssimo Delcídio Amaral possui uma grande ficha de serviços prestados a governabilidade política brasileira,e, atolado até o pescoço e exposto em praça pública em um grande circo de interesses, resolveu abrir o bico com a galhardia de quem será torturado, esquartejado e queimado. E no texto da Delação suplicial de Delcídio, tal qual a série de TV "The Walking Dead' na qual todo mundo vestá infectado e cedo ou tarde vai virar Zumbi, é questão de tempo para todos nós sermos corruptos e cairmos na Operação Lava-Jato, 
 Em nossa recente história democrática,  um mesmo tipo de transformação parece se repetir, como diria Zizek, primeiro como tragédia depois como farsa: a metamorfose invertida da borboleta política, filosófica e idealista em larva rastejante e mesquinha  da fisiologia  administrativa. Após os turbulentos anos da eleição  fracassada de Fernando Collor,  subiu ao poder o príncipe dos sociólogos, Fernando Henrique Cardoso, que muito pouco de sua sociologia aplicou na administração do país, marcada pela radical retirada do Estado da vida pública.

Após 08 anos tomaram o poder seus opositores, vinculados ao partido político mais democrático e engajado politicamente de nossa história, forjado em décadas de movimentos sociais e lutas por direitos humanos e já tendo provado que o sonho era possível através de administrações estaduais em municipais (algumas como Porto Alegre foram exemplo de esquerda para o MUNDO). Pena que o Lula colocou terno e gravata, cortou a barba e parou de falar mal da Rede Globo...

. A administradora Dilma  Roussef diminuiu impostos das grandes montadoras de automóveis  e se recusou a negociar com o motor intelectual do país, a  classe que mais lutou ideologicamente para elegê-la por duas longas greves seguidas.  Pois após quatro anos de administração pragmática  a mesma classe que criticou Dilma por 4 anos  lutou bravamente para reelegê-la, aderindo a uma arriscada, porém necessária lógica de ruim com ela, pior sem ela. Eu votei em Dilma no segundo turno porque passei 8 anos vendo minha Universidade ser sucateada pelo PSDB, agora vejo que, assim como os Sociais Democratas foram transformados em Zumbis pelo PFL (hoje DEM), o Partido dos Trabalhadores deixou  o simulacro de direita do PMDB crescer em seu governo como um câncer. E hoje vemos a esquerda e a direita se esfaquearem a esmo em uma guerra sem fim pelo poder, e a semente do fascismo cresce a cada dia com a ascensão de sujeitos infames como Bolsonaro, Silas Malafaia, Revoltados Oline e Movimento Brasil Livre. Mas o que aconteceu com a esquerda no Brasil, especificamente com o PT, para além da sabotagem e do eterno ódio de boa parte das elites?

Não sei exatamente como ou o por que, mas sempre que penso na história do Partido dos Trabalhadores no Brasil, desde a eleição do lendário Olivio Dutra em Porto Alegre até Dilma Roussef, lembro de Machado de Assis, e da teoria das janelas.

Machado de Assis foi autor de uma  obra revolucionária na história da literatura, a qual li mais de uma vez quando ainda freqüentava os bancos escolares, e hoje ainda encontra-se fixada em minha retina: Memórias Póstumas de Brás Cubas.  Para minha percepção ligeira de adolescente, a  primeira leitura, atravessada pela sofreguidão do encontro,  foi longa, extensa, tortuosa, tal é a complexidade de reflexões e inflexões profundas e cáusticas do personagem principal, Brás Cubas, cuja narrativa parte de um lugar discursivo absurdo: as memórias de um defunto. É claro que, já nos anos 90, isso não me surpreendeu, afinal, o século XX foi saturado de histórias de mortos-vivos através da literatura  aventuresca ou do cinema, mas, segundo dizia minha professora de literatura,  em 1880, em um Brasil pouco alfabetizado, um livro inicialmente publicado em capítulos em um jornal e escrito em primeira pessoa por um defunto provavelmente provocou náuseas legítimas nos leitores, afinal, a literatura, a música e o teatro condensavam toda a carga de alucinações artísticas e ficcionais que o cinema e a televisão hoje quase monopolizam.

E, ademais, em sua funérea narrativa, Brás Cubas delineia a constrangedora saga de um burguês medíocre, mesquinho, um dândi vagabundo e de vida fácil, absolutamente desprovido  de moral e consciência. Filho de uma elite abastada, o personagem, ao longo de sua vida usufrui e corrói a fortuna de seu pai  enquanto experimenta diferentes carreiras profissionais fracassadas e relações amorosas inconclusas, cujo abandono é justificado por um cinismo mórbido, ressentido, corrosivo. Em algum momento do romance Brás Cubas se apaixona por uma linda mulher,  cujo único defeito é ser manca, e sua narrativa da relação é repleta de amor, paixão mas sempre atravessada pela ideia fixa  em torno do defeito físico da amada, culminando no seu abandono lento e absolutamente inescrupuloso, sutil, como se claudicasse em reconhecer que de fato a rejeitara.

Nosso mais famoso Zumbi abre o romance com uma dedicatória:

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança, estas memórias póstumas”.

Uma espécie de alívio autopunitivo, porém desprovido de culpa, afinal, apenas depois de morto o canalha decide narrar sua farsa biográfica. Machado de Assis  era mulato nasceu pobre e adquiriu prestígio, dinheiro e posição social com seu próprio talento e disciplina, em uma época em que nosso país ainda vivia na escravocracia e era comum membros da elite decadente viverem de favor ou adquirirem lugar social pela bajulação. “Memórias Póstumas” é uma espécie de desabafo escrito como contraponto a seus colegas  de juventude, os escritores e poetas românticos, divididos entre narrativas nacionalistas e ufanistas ou heróis do estilo mal-do-século, a maioria mortos ainda na juventude. Pois o principal sobrevivente da geração romântica carregou seus contos, crônicas e romances de uma aguda e  ferina crítica dos costumes, e não é a toa que tenha se tornado  o grande expoente do chamado realismo.

E a “realidade  realista”  cínica e pragmática e do Brasil talvez tenha mudado muito pouco desde então, como Brás cubas exemplifica na sua teoria das janelas, na qual sempre que se fecha uma janela, é preciso abrir outra. A teoria das janelas surge em minha passagem preferida do livro, a meu ver a síntese de no que a esquerda brasileira  se tornou  ao assumir a presidência  da república no Brasil.

Na ocasião, Brás Cubas andava pela rua e encontrou uma moeda, uma meia dobra de ouro:

“Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei um carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do verdadeiro dono.

Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.”
Alguns dias depois, caminhando pela praia em Botafogo, nosso herói tropeça em um misterioso embrulho. Como não havia ninguém por perto, resolve levá-lo para casa e verificar seu conteúdo: cinco contos de réis, que fazem novamente seu pensamento vibrar e refletir moralmente e finalmente agir da maneira mais sensata e pragmática possível.

Não se perdem cinco contos, como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim totalmente, numa praia, é necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência.

— Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa assim... hei de ver...
Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado que a coisa não valia a pena de tamanho estrondo; louvaram-me então a modéstia, — e porque eu me encolerizasse, replicaram-me que era simplesmente grande.”

E eu pouco mais tenho a dizer,  eu poderia encerrar esta coluna tentando imaginar nossa presidenta e nossos políticos   dizendo nas entrelinhas que é fácil ser revolucionário ou anarquista quando não temos um país para administrar ou contas a prestar ao FMI. Mas prefiro deixo o grande Machado de Assis falar por mim, por enquanto  não consigo pensar em nada mais original...

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

"Este caminho, ou nenhum caminho":David Bowie não queria ser herói, e muito menos morrer...





David Bowie não queria ser herói. Nem por um dia, nem por um segundo. Ele também não queria morrer. Eu também não quero. Ele tinha muito medo da morte. Eu também tenho. Eu odeio pensar no assunto, evito, sério. Não sei se felizmente ou infelizmente eu me despi de toda possibilidade de ilusão de que há reencarnação, céu, inferno, Valhalla, Elísio,  fantasmas, ou quaisquer fantasias sobre uma possível existência fora desta carcaça oriunda de um universo sem sentido
Como milhões de pessoas pelo mundo e algumas dezenas de amigos que tenho no Facebook, sou fã de David Bowie desde os dez anos de idade, quando vi o filme "Labirinto" e ganhei sua trilha sonora de presente em vinil. Até os 16 anos, quando tentei aprender a tocar guitarra e meu professor ensinou "Ziggy Stardust". Aprendi a música sem nunca tê-la escutado e  fiquei  muito curioso. Mergulhei no caleidoscópio sonoro rock-pop-progressivo-acústico-estético que Bowie criou a partir do fim dos anos 60 com "Space Odditty", "The rise and fall" entre outros.
Escutar David Bowie é como ver filmes do Kubrick ou quadros de Goya ou Salvador Dali, como comer melancia gelada em um dia quente ou o sorvete da Banca 40 do mercado público.  Há um sentido tão radical na experiência que ela nunca se repete mesmo sendo a mesma. Como boa parte dos seus admiradores, nunca o vi pessoalmente, nem sequer fui a um de seus shows.Há mais de uma década que Bowie não subia no palco, após  ter um infarto, e sempre foi reservado com relação a sua vida pessoal. Mas Freud, em "Luto e melancolia" diz que  a morte de uma pessoa nos provoca uma espécie de psicose temporária, afinal, o corpo "físico" jamais teria sentido sem uma espécie de "alucinação" fantasiosa, a imagem virtual da pessoa que perdemos sem a qual seria impossível sequer pensar sobre ela, o processo de luto envolve, então uma certa coexistência psíquica entre o imaginário e a "realidade".Os ídolos são, para seus fãs, às vezes pessoas mais "reais" ou mais "íntimas" que seus próprios familiares. Quem já experimentou a companhia de uma música quando  esteve sozinho no mundo sabe disso. Quem já foi adolescente e viveu a radicalidade do rock entende melhor do que ninguém.
A notícia da morte de David foi recebida por todos com impacto, como os dinossauros que surgiram após estarem mortos a milhões de anos, tal qual uma estrela  há anos-luz de distância, David Bowie apareceu  e explodiu na esfera pública após estar morto. E justamente com um disco chamado Blackstar (estrela negra). Acordei cedo pela manhã  quando abri o Facebook já estavva lá estampada a notícia no feed da BBC. David Bowie morreu. Meu coração disparou. Fiquei triste, chorei. Como havia chorado recentemente a morte de Lemmy, do Motorhead, e de meu conterrâneo Júpiter Maçã. Até aí apenas mais da mesma tristeza.
Mas a notícia trazia ainda que Bowie lançara um disco novo três dias antes de morrer.Imediatamente fui no Itunes e baixei, não dando importância ao dinheiro. E escutei.A primeira música tem dez minutos, se chama Blackstar. Aí, em pleno verão de Forno Alegre, senti frio. Frio nos olhos, frio nos ouvidos, frio nos neurônios.
Aí o feed do facebook avisou que a música tinha um videoclip, bem como outra faixa chamada Lazarus abri o youtube  e assisti ambos.
Então parei de chorar a morte de Bowie, e passei a lamentar pela MINHA morte.
Sim, o album todo é lúgubre e tanto a faixa "Blackstar" quanto "Lazarus" são absolutamente tristes, mas Bowie é também mestre da imagem, e  a explosão estelar de sua derradeira obra é que ele grita, berra, ruge que já sabia  de sua morte iminente.. não, mais, ele já estava morto quando fez o álbum (como diz o título de uma música sua de 1997 do álbum "Earthling" : "Dead man walking).
Em ambos os vídeos o cantor aparece com o rosto vendado por uma atadura com dois botões costurados no lugar dos olhos, como diz sua música sobre a morte "My death" de 1973 "My death waits like a beggar blind" (minha morte espera como um pedinte cego") ou ao "Lepper Messiah" de Ziggy Stardust e em "Blackstar" a primeira imagem é a de um astronauta morto dentro de um traje furado e remendado com fita isolante, diante de um eclipse (estrela negra). Nem seria necessário falar das referências a "Star man" e "Space Oddity".
David Bowie fez seu último disco sabendo que ia morrer, e sua performance em seus videoclips é de alguém furioso, revoltado, em pânico, desesperado. "This way or no way" canta em  "Lazarus", visivelmente debilitado, envelhecido, sem maquiagem ou glamour, em uma cama de hospital, esquálido, exatamente como estava na vida rea, e absolutamente desesperado.
Ele tinha medo da morte, ele pensou em Lazarus porque Lazarus ressuscitou, e ele grita a letra com medo  e dor, porque quer ressuscitar também.
Eu penso assim, porque também vou morrer, todos vamos morrer, por mais  longa e próspera que seja nossa vida, um dia vamos morrer, e não há lugar para ir, apenas neurônios mortos  e nenhum pensamento, nem nada, porque o nada é ainda pensável, Diz Lacan que a morte não existe, ela é apenas crença. Quando penso em morte penso apenas em pânico.
Diz Bowie em um trecho melodioso de "Black star" atravessado por um  chorus dissonante e incômodo:
"I can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a marvel star)
I’m the great I am (I’m a blackstar)"

No chorus dissonante Bowie diz "eu não sou uma estrela de cinema, eu não sou um popstar, eu não sou uma estrela maravilhosa, eu sou uma estrela negra"
E seu último disco tem na capa apenas uma estrela negra  geométrica  e nada mais.
E Bowie certamente estava cagando e andando para o fato de ter entrado para história, para a eternidade dos ídolos do rock ou por estar vivo em nossas memórias.
Ele não queria morrer.