Artigo
em construção.
“Você
não imagina as coisas que eu vi com os seus olhos”Um olhar
psicanalítico sobre Blade Runner
Eu
assisti Blade Runner pela primeira vez na televisão, em algum lugar
na segunda metade da década de 80, o seu enunciado chamava atenção
como filme de ficção cientítica e ação “O caçador de
andróides”, no mesmo festival televisivo de “O exterminador do
futuro” e , depois pela segunda vez no cinema São João, no
centro de Porto Alegre, quando foi lançada a chamada “Versão do
diretor”, e depois disso já nem lembro mais quantas vezes assisti
com amigos e amigas psicólogos e não cansávamos de debatê-lo, e
pensá-lo, até os anos passaram, virei professor e em 2007, quando
trabalhava no curso de Psicologia da URI em Erechim criei um ciclo de
Cinema a Psicologia e decidi começar por esse grande clássico.
Depois de muitos anos de culto ao filme, aproveitei as quase sete
horas de viagem desde Porto Alegre para, finalmente, ler o livro,
algo que me provocou um choque inesperado pela enorme discrepância
narrativa entre o texto e a tela, algo que , em geral acontece, mas
não de forma tão radical. Senti uma certa vertigem porque aquilo
que pretendia debater e analisar no festival caiu por terra. Os anos
passaram e assisti mais algumas vezes até que neste ano Riddley
Scott delegou a Denis Velleneuve a tarefa de criar uma continuação
chamada “Blade Runner 2049”, o que me levou a ver mais vezes o
filme antigo, sua versão anterior e ler o livro, e a ver o filme
novo três vezes, e a escrever este texto. Cada vez que repeti a
experiência ela nunca foi a mesma, e a versão do diretor mudou a
versão antiga, o filme representou uma guinada radical na
interpretação do filme e o filme novo reconfigurou toda experiência
literária e cinematográfica anteriores. Livros e filmes são
objetos da visão, porém, mais além disso, constituem objetos do
Olhar. A estas idas e vindas do desejo de experimentar e pesquisar
li e reli o seminário 11 de Lacan, quando ele se refere a Merleau
Ponty e sua fenomenolgia da percepção e indiretamente a Freud e
suas noções de objeto e realidade psíquica para me dizer que
aquilo que vemos não vemos olhamos, e o que nos vê, olha para nós.
Na primeira cena do filme aparece o close de um olho e neste olho
está refletida a vista aérea da cidade de São Francisco em
2019,mas é um olho que estamos vendo sentados na poltrona, no lado
de fora da tela , mas ela transmite a ideia que estamos de costas
para a janela e somos transparentes, como se olho nos
atravessasse.Blade Runner em seus elementos diegéticos e extra
diegéticos, em distintas cenas, diálogos conceitos textos,
deslocamentos, condensações nos mostra olhos e olhares, olhares que
escreverei aqui para olhos leitores, ou escrileitores, pois como nos
exemplifica o artista Grahan Fink,
que
faz desenhos com os olhos, usando uma tecnologia sensorial.
Não
é assim que nosso olhar produz o objeto e no objeto?
”Posso
me sentir sob o olhar de alguém cujos olhos não vejo, nem sequer
vislumbro. Basta apenas que alguma coisa me indique que outros podem
estar ali. Essa janela , se estiver um pouco escuro e eu tiver razões
para pensar que alguém estiver atrás dela, é imediatamente um
olhar” Jacques Lacan, Seminário 11
-“Eu
conheço você, eu projetei seus olhos”
-“Você
não imagina as coisas que eu vi com SEUS olhos”
O
diálogo acima pertence a uma cena de Blade Runner de 1983 em que os
Replicantes encontram o engenheiro geneticista da corporação Tyrell
e é uma entre tantas outras que enfatizam as complexas relações do
olho, da visão e do olhar presentes na narrativa de Riddley Scott:
os olhos artificiais, o olho da coruja, a iluminação que desnuda as
pupilas dos personagens, Darryl Hannah usando tinta spray como
maquiagem, e , é claro os belos olhos azuis de Rutger Hauer quando
relata ao perplexo e onipotente Deckard as maravilhas que viu em sua
curta vida, que encerra “lágrimas na chuva”.
Para
quem leu o livro de Phillip K. Dick a obra de Riddley Scott é algo
absolutamente estranho, pois além de todas as mudanças no caráter
dos personagens e na prórpia essência da história, o diretor
produziu uma obra cinematográfica que priorizou absolutamente os
aspectos sensoriais do cinema.
A
narrativa e o roteiro são simples, a discussão a respeito de
humanos e máquinas já havia sido feita em outros filmes (em 2001 de
Kubrick e Clarke e até mesmo no Alien do próprio Scott).
O
verdadeiro impacto de Blade Runner está em condensar o apetite do
Olhar, distinto do Ver como percebe Lacan quando evoca a
fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty: a visão não é mero
atributo dos raios de luz que atingem o olho ou do mero processamento
de informação. Há algo para além da visão que implica no desejo
alienado ao desejo do Outro, “via-me vendo-me” diz Lacan,
inagurando o conceito de Pulsão escópica. Ora, no cinema, diz
Christian Metz, há muito mais eventos que acontecem “atrás” das
câmeras que podem durar anos e que são exibidos ao espectador em
algumas poucas horas em uma sala escura, gerando o paradoxo: nada
acontece no filme quando os atores estão presentes, e tudo acontece,
a explosão do gozo filmíco se dá justamente quando os atores já
não estão mais lá, e nos prendemos ao enredo, a luz, ao som, a
voz...
Blade
Runner de Riddley Scott, como diz Zizek do próprio cinema, nos diz o
que devemos desejar, nos inscreve escandalosamente no desejo de
desejar, nos jogos de luz e sombra, na música hipnótica de
Vangelis, no absoluto pesadelo de uma cidade infinita em um planeta
morto.
Pois
Blade Runner 2049 é tudo isso acompanhado de um jorro pulsional
libertado de 30 anos de latência, mas que se atualiza dialeticamente
ao ano de 2017, a data exata do nascimento dos andróides do filme
antigo.
Novamente
é trazido um enredo simples e singelo, comparado ao turbilhão
obsessivo de filmes, séries, mangás, quadrinhos e toda sorte de
tecnologia que explora as relações de humanos-máquinas.
Nosso artigo propõe um Olhar para além do ver o filme,
o Olhar da pesquisa psicanalítica que é a que acontece em situação
de transferência , de amor pelo cinema, pela obra e pela teoria de
Freud e Jaques Lacan e suas ressonâncias no Sloveno Slavoj Zizek.
Este olhar é esquadrinhador de potentes conceitos que nos fazem ver
com outros olhos: os olhos andróides, os olhos do Olhar, dos
registros do Real, Imaginário e Simbólico, dos significantes e da
dialética do desejo naquilo que nos faz humanos.
A obra cinematográfica Blade Runner transborda os
limites da experiência unívoca de ver “um filme” vamos
considerar aqui seus efeitos em um conjunto de quatro tempos que
conectam os admiradores da obra em ua mesma cadeia: o livro de Philip
K, Dick “Andróides sonham com ovelhas elétricas” o primeiro
filme de Riddley Scott, com o crivo da produtora de Hollywood “Blade
Runner” e Blade Runner, versão do diretor (atualmente chamada de
“The Final Cut”)
Defendemos aqui uma possibilidade de ressonância da
obra cinematográfica como articuladora de material imagético
semelhante aos mecanismos de produção de material e codificação
do sonho propostos por Freud no livro “A Interpretação dos
sonhos”, pelo fato de o diretor Riddley Scott ter capturado
sentidos do livro e os distribuído ao longo do filme em uma cadeia
significante em processos de condensação e deslocamento. Para tanto
precisamos primeiramente descrever “o caso” Blade Runner em suas
distintas formações imagéticas para posteriormente acompanhar a
cadeia significante e seus múltiplos nós: o Olhar, as memórias
implantadas e o sujeito que se constitui no desejo do Outro, o
humano, o medo, a imagem.
Ponto de partida: o livro de Phillp K. Dick
“Além disso, hoje
ninguém se lembrava por que a guerra eclodira ou quem a vencera,
se é que houve vencedores. O pó que contaminara a maior parte da
superfície do planeta não teve origem em nenhum país, e ninguém,
nem mesmo os inimigos da guerra, o havia planejado. Primeiro,
estranhamente morreram as corujas.
Na época foi quase engraçado, as aves brancas, gordas e felpudas
caindo aqui e ali, nos quintais e nas ruas; saindo apeinas ao
crepúsculo, como faziam quando estavam vivas, as corujas passaram
despercebidas. As pestes medievais manifestaram-se de modo
semelhante, sob a forma de muitos ratos mortos. Esta pesre, porém,
vinha do alto. É claro que depois das corujas vieram outras aves,
mas na época o místério tinha sido compreendido. Antes da guerra,
haviam colocado em vigor m programa de colonização inadequado, mas
agora que o sol deixara de brilhar na Terra a colonização entrara
em ua fase inteiramente nova. Ligada à colonização, fora
modificada uma arma de guerra , o “Combatente
Sintético da Liberdade”,
capaz de funcionar em um mundo alienígena, o robô
humanóide-estritamente falando, o andróide orgânico-passou a ser a
mula de carga do programa de colonização. Sob a legislação da
ONU, cada emigrante automaticamente recebia um subtipo de andróide
de sua preferência e , em 2019, a variedade de subtipos desafiava
toda a compreensão como os automóveis americanos da década de
1960. Esse foi o incentivo definitivo à emigração: o servo
andróide como isca e a precipitação radioativa como vara de pesca.
A ONU facilitou a emigração e tornou difícil, até mesmo
impossível, ficar na Terra. Permanecer na Terra podia significar
ver-se repentinamente classificado como biológicamente inaceitável,
uma ameaça para a imaculada hereditariedade da raça. Depois de
identificado como especial, um cidadão,mesmo que aceitasse a
esterilização, saía da história. Na realidade, deixava de fazer
parte da humanidade.” Phillip K. Dick, 1968/2007 “Do androids
dream of eletric sheep?”RJ Editora Rocco
O ano é 2021 e a Terra sobreviveu ao que o livro chama
de “A Guerra de Terminus”, o que acabou com boa parte dos
ecossistemas e animais vivos. Como sequelas da guerra a Terra vive
sob uma intensa nuvem de poeira tóxica e radioativa, e os habitantes
que sobraram são proletários que não possuem recursos para emigrar
ou não foram aprovados em testes genéticos devido a contaminação
. A indústria genética e robótica está altamente desenvolvida e
são fabricados andróides e animais robôs, sendo os animais
verdaderios raros e caríssimos. A humanidade divide-se em Humanos
coloniais, pessoas rejeitadas genéticamente e condenadas a viver na
Terra e andróides.Andróides rebeldes eventualmente fogem dos
planetas colonizados (onde são escravos ) e fogem para a Terra,
exigindo o trabalho de caçadores de recompensas para caçá-los,
Rick Deckard é um
caçador de recompensas medíocreque vive uma vida de classe média,
é casado, possui um regulador psiquico para ele e sua esposa (uma
máquina que capaz de controlar emoções por impulsos elétricos
neuronais) e vive o luto de sua ovelha verdadeira, Groucho, ter
morrido de tétano por sua negligência. Deckard tem uma obsessão
por capalogos de venda de animais e sonha possuir um animal grande de
verdade (ovelha, cavalo, etc) tendo comprado uma ovelha artificial,
mas sente vergonha e inveja de seus vizinhos , muitos deles
possuidores de animais verdadeiros. Seu salário dá para o sustento
mas Deckard planeja caçar mais andróides para conseguir 5 mil reais
e comprar um animal verdadeiro. Seis andróides rebeldes fogem de seu
planeta e vão parar na Terra, e Deckard recebe a missão de
caçá-los. Enquanto “retira”os andróides Deckard depara-se com
Rachael e e seu pai, o dono da Rosen Corporation, e persegue sua
obsessão por animais verdadeiros. Deckard testa Rachael e ela e seu
pai tentam enganá-lo e suborná-lo com uma coruja verdadeira
No livro existe uma religião chamada Mercerismo. O
mercerismo é descrito como uma religião em que os fiéis se
conectam por computadores em uma espécie de realidade virtual em
rede onde é transmitido o sofrimento de u mártir chamado Wilbur
Mercer, e os fiéis conectados experimentam seu sofrimento em uma
espécie de grande fusão empática coletiva. Apesar de não ser
citado no filme, o mercerismo dá origem ao teste de empatia de
Voigt-Kampf que apara
ece no filme como o detector de andróides. Ao longo dos
anos os humanos sintéticos vão sendo aperfeiçoados em
inteligência, até chegar na série Nexus 6 que chega a ser mais
inteleigente que a maioria dos humanos, contudo, é imune a empatia
do Mercerismo. Segundo Dick, até os animais mais primitivos
desenvolvem inteligência, mas poucos conseguem ser empáticos.Deckard
discute com seu chefe a existência de humanos que não são
aprovados no teste de Voigt Kampf
No livro há um personagem cuja história acontece em
paralelo que é John Isidure, um humano que foi descartado pela
contaminação e por ser retardado mental e um fanático mercerista.
No filme ele seria substuído por JF Sebastian, genio da robótica
que sofre de uma sindrome degenerativa. O que há em comum aos
personagens é o fato de viverem sozinhos em um prédio e possuírem
uma doença. O Deckard doivro que guarda pouco do charmoso detetive
noir de vivido por Harrison Ford simplesmente percorre a trama em
sua obsessão por conseguir recursos para ter uma ovelha e viver sob
os preceitos do Mercerismo. Deckard leva a cabo a retirada de todos
os andróides: na ordem: Polokov (que no filme ataca Holden, o
caçador numero Luba Luft (que é cantora de ´ópera e questiona
Deckard se ele é um andróide), Garland (policial) Roy e Irmgard
Batty, Pris, estão disfarçados de policiais em uma espécie de
distrito policial falso, Deckard os encontra em uma espécie de jogo
de espelhamento, onde eles tentam convencê-lo que é um andróide e
eles são os caçadores.sem nenhuma questao existencial. O detetive
conhece um outro Blade Runner que chega a confundir com um andróide
e que o ajuda a matar Luba Luft, porém ele se sente mal com isso por
ela ser um agrande cantora de ópera e não ter feito mal a ninguém.
Deckard aplica uma questão do teste em si mesmo e descobre sentir
empatia por andróides.
Ao exterminar 3 dos 6 andróides, Deckard compra uma
Cabra verdadeira, o que tem efeitos terapêuticos sobre ele e a
esposa, mas ainda faltam três andróides, e Deckard pede ajuda de
Rachael, que o encontra em um hotel, ambos ficam bêbados e acabam
tendo relações sexuais. Ambos ficam confusos com a relação
humano-andróide, a emoções e ao fato de eles terem vida curtae
ele deixa para caçar os tês andróides restantes, que estã
escondidos no prédio de Isildur. No momento da caçada um
apresentador de TV anuncia que o mercerismo é uma fraude, e Isildur
tem alucinações com Mercer. Após matar facilmente os três
andróides Deckard foge para um lugar afastado e tembém começa a
ter alucinações, encontra um sapo que pensa ser verdadeiro e vai
para casa,quando sua esposa lhe conta que Rachael matou sua cabra.
Deckard descobre que o sapo é artificial, mas dá pouca importância
a isso e vai dormir. Fim da história.
O
filme de Riddley Scott, o corte final
Ela é um replicante, certo?
Estou impressionado. Quantas perguntas são necessárias
para identificar um deles
20 ou 30, cruzando os dados
No caso de Rachael levou mais de 100
Ela não sabe
Mas acho que começa a suspeitar
Suspeitar?como pode não saber o que é?
A meta da Tyrrel é o comércio, nosso lema é “mais
humano que um humano”, Rachael não passa de um experimento, nada
mais. Começamos a identificar neles uma estranha obsessão, afinal,
não tem experiência emocional e apenas alguns anos para armazenar
essas experiências que você e eu temos como certas. Se lhes dermos
um passado, temos um ambiente aconchegante para as suas emoções, e
, consequentemente, podemos controlá-las melhor.
-Memórias! Você está falando de memórias!!!!
“Você
parece sozinho, J. F.”
“Ah,
eu faço amigos. Digo, faço mesmo, meus amigos são brinquedos, eu
os faço,sou designer genético, é um hobby”
O ano aqui é 2019 e o cenário é semelhante ao do
livro, porém estamos em Los Angeles sob uma constante chuva. Quatro
andróides da série Nexus 6 fogem de seu planeta em direção a
Terra e Deckard , um caçador de andróides aposentado ( o melhor
deles) tem a missão de retirá-los.O Deckard do filme é um homem
taciturno, solitário e, enquanto caça os Andróides, que buscam a
cura para sua vida curta ( no filme, diferentemente do livro, por
serem inteligentes de mais são programados para viver apenas 4 anos,
como mecanismo de defesa para caso dedesenvolverem emoções)
Deckard depara-se com Tyrell (no livro era Rosen ) e sua Filha
Rachael . Tyrrel solicita que Deckard faa o teste de Voigt Kampf
aplicado em andróides em uma humana, sua filha. Deckard aplica o
teste e descobre que ela é uma andróde muito sofisticada e que não
sabe. Rachael o visita e Deckard revela sua natureza inclusive que
suas memórias são memórias da sobrinha de tyrrel implantadas, o
que provoca grande tristeza em Rachael
Roy caça a dançarina a partir de uma pista a partir de
fotos encontradas no apartamento abandonado de Kowalski, utilizando
uma tecnologia apurada de ampliação de fotos tiradas pelo
replicante, uma ampliação radical e obscena do olhar do
outro.Açiás, as fotos são importantes marcadores temporais, provas
de uma existência anterior, Rachael mostra a Deckard uma foto da
infância como prova de que não seria humana, mesmo em um futuro
onde seja fácil manipular imagen como também o é para memórias,
Após
matar a dançarina diante dos ollhos de Kowalski e em uma das
imagens mais marcantes do filme que é o cadáver da replicante
estático em meio a manequins de vitrine.Dekckard pede a Rachael que
o encontre em um bar. Rachael recusa. Ao sair do bar Deckard é
atacado por Kowalski mas Rachael salva sua vida atirando na cabeça
do replicante, enquanto espancava o detetive, o replicante diz “
nada pior que viver com medo” “nada pior que uma coceira que não
se pode coçar”Rchael havia fugido de Tyrell e Deckard lhe dá
abrigo. Rachael pergunta a Deckard se ele sabe sua data de criação
e sua longevidade, pergunta se ela fugisse para o norte ele iria
caça-la ( ele responde que não porque lhe deve uma) e se ele mesmo
se submeteu ao teste. Deckard adormece e é acordado por Rachael
tocando piano (o piano permanece no filme de 2049, duas vezes, na
segunda Joe encontra Deckard dizendo que segiu o piano) Deckard
desperta com Rachael soltando o cabelo, ele faz ela dizer que o ama,
e eles fazem sexo; Após fazerem sexo, Deckard sonha com um
unicórnio. Ao sair para caçar andróides, o chefe de polícia diz a
ele que Rachael precisa ser caçada
Os andróides seguem sua busca por Tyrrel, matam o
engenheiro projetista de olhos e cohecem JF Sebastian, outro
engenheiro genético, , seduzido por Pris (semelhante ao livro.que os
levará a Tyrrel, que é morto por Roy, tendo seus olhos furados.
Deckard descobre o endereço de JF Sebastian e consegue
matar Pris , porém é Roy Batty o mais difícil e em uma cena
antológica no cinema após uma luta no alto de um prédio, Roy
Batty. Salva a vida de Deckard e, diante dele, profere seu discurso
existencial, em uma das cenas mais famosas e significativas da
história do cinema
I've
seen things you people wouldn't believe. Attack ships on fire off the
shoulder of Orion. I watched c-beams glitter in the dark near the
Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like tears
in rain. Time to die.
Eu
vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao
largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao
Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo,
como lágrimas na chuva. Hora de morrer.
O colega de trabalho de Deckard, vivido por Edward James
Olmos, após essa cena, fala para ele : “uma pena que ela tenha que
morrer, mas, afinal, quem vive?”
Deckard volta para casa para buscar Rachael e fugir. Na
entrada de seu apartamento há o origami de um unicórnio. Seu colega
detetive fazia origamis.
A cena final é Deckard e Rachael entrando no elevador e
fugindo.
Duas rupturas, duas versões
Na primeira versão de Blade Runner exibida no Brasil o
filme é narrado em off pelo protagonista, não existe a cena em que
ele sonha com o unicórnio. O fim do filme mostra o casal andando de
carro em um lugar repleto de árvores (que seria o norte, não
afetado pela poluição)
Na versao final cut o significante unicórnio (o
detetive sabe o conteúdo de seus sonhos dá a entender que Deckard
possui memórias implantadas, logo , é um replicante). Um pequeno
detalhe, um detalhe infinitesimal quase imperceptível, um sonho
conectado a um Origami. O Origami é um significante que só
constitui o sujeito ligado a outro significante, cujo significado é
barrado, só compreendemos através de uma vasta cadeia: andróides,
memórias implantadas, Deckard no livro e no primeiro filme é humano
e no segundo filme um semblante nos convence que ele é um
replicante, nada dito, tudo imajado.
Em 2017, mais de 30 anos após o filme, Riddley Scott
atua como produtor e contrata o diretor Denis Villeneuve e os
roteiristas para dirigir um filme cujo mote é o fato de Deckard ser
um replicante e seu romance com Rachael, em uma obra cuja história
dá sequencia ao filme anterior e também resgata muitos de seus
elementos e também o trasversaliza com elementos sutis oriundos da
ficção de Phlip K.Dick totalmente sonegados por Scott. È a partir
de 2049 que pretendemos percorrer as cadeias significantes da obra e
produzir nossas reflexões.
A
obra transmídia de Denis Villeneuve
O que o diretor Denis Villeneuve nos traz em seu filme é
novamente um objeto sublime que desperta o desejo no Olhar: os
cenários são grandiosos e belíssimos, os efeitos sonoros e a
violência poética de um planeta destruído e renegado ao lixo
provocam um encontro angustiante com nosso objeto mais paradoxal de
desejo: a morte, não apenas como o fim da vida, mas como a morte do
humano.
Em
Blade Runner 2049 , após um grande atentado protagonizado por
replicantes chamado “o grande apagão” em 2021 todos os
ecossistemas todos foram aniquilados e a humanidade foi salva pela
corporação Wallace que desenvolveu um sistema de cultivo de
proteínas através de um tipo de verme.
Ainda
que o filme tenha quase três horas de duração, Villeneuve apostou
na intensidade e na duração das cenas em detrimento da cronologia e
para compensar produziu três curta-metragens que complementam a
trama e preenchem algumas lacunas do que teria acontecido entre 2019
e 2049. No primeiro curta, “2036 nexus down”,
A
humanidade sobrevive. O chamado Futuro Distópico pensado por Phillip
K. Dick é mais um paradoxo, afinal a humanidade atiingiu um nível
de desenvolvimento tecnológico sem precedentes, colonizou outros
planetas e conseguiu criar uma raça inteira de escravos feitos de
carne artificial. Aqui vem a frase enigmática de outra ficcção
distópica: matrix. Ao ápice do desenvolvimento tecnológico, a
utopia daquilo que Bruno Latour chama de ciência moderna, é o
absoluto desastre . Blade Runner é o contrário de Matrix, em Matrix
as aparências enganam, em Blade Runner o visual opressor e sombrio
do filme contrasta com o super desenvolvimento
Joi,
Joy, Joe Enjoyment, Jouissance, Gozo
O
Andróide de 2049 mora com uma mulher virtual, que habita um
computador o holográfico em sua casa e gamha de presente um emanador
que a torna portátil e “mortal”, o que é seu desejo. O humano
definido por sua morte. Assim como no filme Her, a mulher virtual
contrata uma replicante “de carne e osso” para fazer sexo com
Joe e sobrepõe sua forma fantasmatica a forma “concreta”. A
Assimetria da relação sexual e seus aspectos virtuais. A mulher
“real” é expulsa pela mulher virtual..
"...encontrar-se na posição
do amado é uma descoberta tão violenta, até traumática: ser amado
me faz sentir diretamente o hiato entre o que sou como um ser
determinado e o insondável X em mim que causa amor. A definição de
amor de Lacan — amar é dar o que não se tem ... — tem de ser
suplementada com... para alguém que não quer. Não é isso
confirmado por nossa experiência mais elementar quando alguém
declara de modo inesperado que nos ama apaixonadamente?A primeira
reação, precedendo a resposta positiva, é que algo obsceno,
intrusivo, nos está sendo impingido."
Em ZIZEK, S. Como ler Lacan. RJ,
Jorge Zahar Editora, 2010
Aqui na referência que Zizek a
Lacan temos vemos a total virtualidade envolvendo o amor entre um
replicante que se parece com um humano fisicamente mas não o é por
questões meramente abstratas e um software que projeta um holograma,
uma fantasia, mas que é capaz de amar e ser amado. Aqui encontramos
um espelhamento entre os dois filmes: o casal Deckard-Rachael- dois
replicantes que não sabem se são ou não, que inicialmente pensam
que ão humanos, e cuja posição seguinte é de Deckard pensar ser
humano e saber que Rachael é replicante, para a seguir Deckar
revelar a Rachael que ela é uma replicante pelo resultado do teste
mas também pelo fato de saber o conteúdo de suas memórias
implantadas, para ao final, Deckard, na versão do diretor, sonhar
com um unicórnio e experimentar o traumático encontro com suas
memórias implantadas ao ver que o Blade runner de Olmos fazer um
origami do conteúdo do seu sonho, uma clara intrusão do Real.
Quando Deckard é confrontado com Wallace, este lhe mostra o áudio
de seu primeiro encontro com Rachael, as perguntas do Voigt Kampf, e
lhe apresenta uma cópia dela e seu crânio, portador do código
fundamental que representa a reprodução dos replicantes. Ao fazer
uma verdadeira elegia ao amor dos dois Wallace lança uma nova
ambivalência ao caráter humano de Deckard e Rachael, se o seu
primeiro encontro seria amor ou precisão matemática. Humanos ou
andróides, estamos todos presos a rede simbólica, o triunfo do
simbólico sobre o imaginário; assim como a revelação da
“desumanidade” de Deckard, no momento em que ele se descobre
falsamente humano é sonhar com um unicórnio, uma memória falsa de
um animal que não existe, a mais bela e sutil imagem da utopia
“Um
dos lugares-comuns de hoje é que o chamado sexo "virtual",
ou "cibernético", representa uma ruptura radical com o
passado, uma vez que, nele, o contato sexual efetivo com o "outro
real" perde terreno para o prazer masturbatório, cujo suporte
integral é um outro virtual —o sexo por telefone, a pornografia,
até o "sexo virtual" computadorizado... Ar esposta
lacaniana a isso é que, primeiro, temos que denunciar o mito do
"sexo real", supostamente possível "antes" da
chegada do sexo virtual: a tese de Lacan de que "não existe
relação sexual" significa, precisamente, que a estrutura do
ato sexual "real" (do ato praticado com um parceiro de
carne e osso) já é
intrinsecamente fantasmática; o corpo "real"
do outro serve apenas de apoio
para nossas projeções
fantasmáticas. Em outras palavras, o "sexo virtual" em
que
uma luva simula os estímulos do que se vê na tela, e assim por
diante, não é
uma distorção monstruosa do sexo real, mas
simplesmente torna manifesta sua
estrutura fantasmática
subjacente”( ZIZEK, 1994 p.08)
Wallace
é um homem cego que descobriu uma maneira de erradicar a fome no
mundo distópico, e também o comprador do espólio da Tyrrel
Corporation, é marcante a transmissão feita de um filme a outro, já
que Tyrrel usava grandes óculos de lentes garrafais e foi morto pelo
andróide tendo seus olhos furados e sangrando.
No
espaço entre 2017 e 2049 há um grande apagão que deletou boa parte
dos dados digitais , um grande esquecimento(que é relatado no filme
e depois retratado em um Anime que faz parte do universo expandido).
Após esse apagão a atividade andróide é proibida, e Wallace
consegue negociar sua liberação a partir da criação de uma nova
série de Nexus totalmente obediente (há um curta metragem no
universo expandido no qual ele faz uma demonstração obrigando um
replicante a suicidar-se). Neste novo Universo, os Blade Runners são
replicantes obedientes que caçam replicantes antigos, e é aí que
entra Joe. A história começa com Joe retirando Sapper, um nexus
antigo que lutou em uma guerra na qual os humanos usaram apenas
replicantes como soldados, descoberta feita ao longo da guerra e que
provocou a revolta e o ataque terrorista de pulso eletromagnético
que provocou o grande apagão
Joe
é um replicante escravo blade runner que trabalha para a polícia em
troca de dinheiro para viver uma vida tranquila com sua esposa
“mulher virtual', e gasta seu salário comprando o emandor , Aqui
vemos uma sutil referência ao livro , pois Deckard, no livro, é
casado e vive uma rotina classe média, coleciona catálogos e caça
andróides para juntar dinheiro e comprar uma ovelha de verdade. Na
casa dele há um aparelho moderador de humor, quando tem uma
discussão com a esposa, basta apertar botões e tudo se acalma (isso
não aparece de forma alguma no filme antigo ) Outra referência ao
livro é quando Joe interroga, em um asilo, o detetive que auxilia
Deckard no filme original (também vivido por Edward James Olmos) e
este diz a ele, exibindo um origami de ovelha: Deckar foi atrás do
seu sonho, referência o título do livro “Andróides sonham com
ovelhas elétricas” e ao sonho do Deckard original de possuir um
animal de verdade.
Outra
referência ao livro é o fato que não existir romance entre Deckar
de Rachael, na obra de Dick Rachael é uma andróide programada para
enganá-lo. No filme isso se converte na questão pricipal, Duas
cenas são apresentadas com grande impacto emocional sobre os
espectadores que cultuaram a obra de Scott por 30 anos:
amor
ou precisão matemática, destino ou acaso, a reprodução dos
andóides
O
personagem Wallace tenciona produzir replicantes que se reproduzam
para poder produzir mais, e diz “o mundo perdeu a coragem de ter
escravos”, chama seus replicantes de anjos. Para os replicantes
rebeldes a reprodução significa a liberdade de ser humano. Contudo,
quando a lider da rebelião encontra Joe, este mostra frustração ao
não ser o bebê, e ela diz 'todos nós desejamos ter sido”, ou
seja, basta apenas um para o sonho ser possível , apenas um tem o
gozo e este deve morrer; Aqui chegamos ao impasse. Replicantes são
criaturas .
Aqui
aparece duas noções: a de que os replicantes precisam ser humanos
para serem escravos e a de que eles possam ser humanos para serem
livres. Animais e máquinas não podem ser escravos, apenas humanos
podem ser escravos.
Replicante
é um significante que gera uma ambivalência: são replicantes
porque replicam no sentido de contestar ou por que são produzidos
por réplica ( em modelos-moda-cópias) e não reprodução.
No
filme de 1983 os andróides são cópias humanas cujas diferenças
são ínfimas, apenas identificadas por uma escala composta por
perguntas complexas feitas por um examinador especializado e com o
examinado ligado a aparelhos que medem seus sinais vitais, o tempo
de reflexo e prncipalmente, o comportamento de suas pupilas.O chamado
teste de Voigtt-Kampf é composto por perguntas que provocam um certo
estranhamento pela sua aleatoriedade “Você está andando em um
deserto e vê um cágado com o casco virado” “você vê seu
marido lendo uma revista de mulher nua”, o olho do examinado está
em evidência, como se o semblante humano fosse rompido pela
violação da intimidade do olho. Em 2049 os andróides são
praticamente indetificáveus a “olho nu”, pela nudeza do olhar e
por um código numerico no “branco do olho”.
Aqui
aparece uma das principais metáforas da subjetividade humana,
paraSouza (2017): o código de barras, que em Blade Runner é
expresso por “códigos que barram” os muros entre o que é ou não
humano. Souza propõe o código de barras como metáfora de três
espaços singulares, muito importantes aqui em nossa análise:
“1)Como
espaço de captura em um código que desconhecemos: o sintoma como
barra, 2)como espaço de transmissão e de herança: a transferência
como barra 3)como espaço de fundamento de um valor compartilhado: a
utopia como Barra”
A
Barra humanos-replicantes
A
Escala Voigt-Kampf é substituída por um protocolo de stress pós
traumático cuja mensagem é “células interligadas” a ser
repetida continuamente.
Aqui
o que interessa não é saber se um andróide é um andróide, e sim
se ele se contaminou com empatia ao ser submetido a situações de
intensa emoção.
Teste
de parâmetro pós-traumático.
-Um
sistema de células a interligar células interligadas dentro de
células interligadas dentro de um eixo.E com um tremendo destaque,
contra a escuridão, umafonte alta e branca jorrava.
-Você
já esteve em alguma instituição? Células
-Células
-Você
fica preso em uma célula (cela)? Células
-Células
-Quando
você não está exercendo sua função você fica numa caixa
pequena? Células
-Células
-Interligadas
-Interligadas
-Qual
é a sensação de segurar a mão de quem você ama? Interligado
-Interligado
-Eles
o ensinam a sentir dedo contra dedo? Interligado
-Interligado
-Você
anseia por sentir o seu coração interligado? Interligado
-Interligado
-Você
sonha em estar interligado?
-Interligado
-O
que sente segurando seu filho nos braços? Interligado.
-Interligado
-Sente
que falta um pedaço em você? Interligado.
-Interligado
-Dentro
de células interligadas.
-Dentro
de células interligadas
-Porque
não diz isso três vezes?Dentro de células interligadas.
-Dentro
de células interligadas, dentro de células interligadas, dentro de
células interligadas.
-terminamos
Afinal,
os andróides no universo do filme são produto de engenharia
genética, são carne, tem células, sangram, morrem precisam comer..
O protocolo serve para verificar se as emoções “humanas”interferem
no seus parâmetros “normais” de obediência. Joe apresenta
defeito quando suas memórias implantadas encaixam na realidade,
quando descobrem que elas são reais. Assim como a criança mítica
que antes de nascer é apenas carne da qual os outros falam, no
processo de constituição do sujeito passa de células interligadas
para alguém que articula na fala a demanda e o desejo do outro
passando de objeto a sujeito.
Células interligadas em
células interligadas Em um caule. E terrivelmente distinta Contra a
escuridão, tocou uma fonte alta e branca." Livro Fogo Pálido
de Nabokov
Chefe:-você
tem alguma memória significativa?
Joe:
-tenho, mas faz algum sentido contar uma memória se ela é
implantada? Como falar da infância se eu não tive infância?
Chefe-
E se eu disser que é uma ordem?
Ao
ser confrontado com sua condição de sujeito assujeitado, forçado
na sua condição paradoxal de alguém que o trata como escravo mas,
ao mesmo tempo o convoca a colocar-se como ser falante,Joe relata a
sua a memória de viver em um orfanato e ocultar um cavalo de madeira
onde está inscrita sua data de nascimento, e, ao visitar este
orfanato, constata que sua memória implantada tem correspondência
com a realidade, e o diretor compõe a cena deste enconttro com uma
temporalidade lenta e trilha sonora de gravidade extrema, como se
fosse uma espécie de pesadelo, um encontro insuportável das
coordenadas da fantasia com sua correspondência na realidade. No
filme antigo Harrison Ford é apresentado como um humano que duvida
se é um replicante, e Rachael é uma replicante que pensa que é
humana e descobre que suas memórias são implantes. Joe , no início
do filme sabe que é um replicante e que suas memórias são
implantadas, até o momento e que encontra a realidade e ela se
encaixa nas suas memórias, para depois, como uma dialetica hegeliana
do desejo, acaba reconhecendo que “as melhores memórias são
criadas por stellina”, ou seja, coloca-se em uma posição de não
mais importar com o que é “real” ou não, e , após viver toda
sua vida como um escravo, morre em um ato de liberdade e
transgressão. A cena final emula a morte do andróide no filme
antigo, na primeira vez em que a trilha sonora do filme antigo é
executada, o que provoca no espectador uma conexão, uma ponte entre
significantes pelo laço afetivo enrte os filmes. “Hora de morrer”.
No primeiro filme o poderoso caçador Deckard mostra-se pela primeira
vez vulnerável tanto física quanto espiritualmente ( seu lugar de
caçador de andróides maus é deslocado pela eloquencia da morte e
da filosofia de Rutger Hauer e pela dúvida de ser também um
replicante). Neste último filme, ao revelar-se como Replicante capaz
de se reproduzir ,Deckard, ao encontrar sua filha, também morre
como replicante para seguir rumo a algo que, segundo a replicante
prostituta, é “mais humano que o humano”; uma citação
explícita a Nietszche e ao que sua chefe diz “um muro que cai”,
para que a verdade possa ser revelada.
Talvez
o que Deckard tenha transmitido a seu “filho” Joe seja o processo
de superar o imaginário de ser ou não ser replicante ou ser humano
para inscrever-se na ordem simbólica de ser sujeito, de um
significante para outro.ou Como diz Souza,
2017
“Vamos
encontrar o termo ficção logo na abertura dos Escritos de
Jacques Lacan com o clássico texto sobre a Carta
Roubada,
onde veremos enlaçada a relação entre verdade e ficção. Neste
texto, Lacan nos apresenta um sujeito virado ao avesso
pela ventania do significante. A verdade ali em questão é a ordem
simbólica, constituinte do sujeito. É esta verdade, escreve
Lacan, que possibilita a própria existência da ficção. (LACAN,
1998, p. 14). Em outro momento , no Seminário sobre asRelações
de Objeto vai
ser mais categórico ao dizer que “a verdade tem a estrutura da
ficção”. (LACAN, 1956/1957, p. 134). Abalo sísmico da
psicanálise na pretensão daqueles que querem encontrar algum ponto
fixo que nos oriente em relação a verdade. Aqui, a
verdade, surge como ex-cêntrica, como fora do lugar e se há
uma “fixão” em
cena é o do real, ou seja, do impossível que fixao
sujeito na linguagem. Lacan, em sua gangorra poética, joga com esta
imagem de ficção e fixão no “Aturdito”, conferência que
realiza pelo quinquagésimo aniversario do hospital Henri-Rousselle
em 1972. Etourdi,
em francês significa distraído, que age sem refletir, o
que vive no mundo da lua. O distraído que nos salva, pois como
lembra Leminski distraídos venceremos . Tour (volta)
tourner ( dar voltas), dar voltas em torno do “dire” , do
dizer e do dito… “
Aqui
vemos a referência edipiana, afinal na obra Edipo Rei o personagem
percorre a trama em busca do assassino no seu Reino, que finda sendo
ele mesmo. Joe chega a acreditar que descobriu um Outro eu
desconhecido, que na verdade não é ele, mas cuja realidade se
encaixa em sua memória.
No
filme “Amnésia”, , de Christopher Nolan o personagem de Guy
Pearce sofre uma terrível agressão cuja sequela é só poder reter
os últimos quinze minutos de lembranças.Preso a uma memória
traumática e ao constante apagamento, o personagem tatua no próprio
corpo informações que considera importantes para empreender sua
busca por justiça. A narrativa privilegia o ponto de vista do
protagonista e Nolan consegue contar a história de trás para
frente, e termina com a sensação de andar em círculos, de não
sair do mesmo circuito, a imagem do Orobóros, a estratégia de
tatuar lembranças fugazes fracassa pois o que está escrito não
resiste aos apagamentos, a palavra presa na cadeia significante. Da
mesma forma que as tatuagens do personagem de “Amnésia”, cujo
título original é mais condizente com nossa argumentação
“Memento”, fragmento de texto, de memória, Joe tem memórias
implantadas e busca sua condição existencial ao tentar dar sentido
a tais memórias, saber se o que vive é “verdade” ou não, e
finda por descobrir também radicalmente que a verdade é efeito do
sujeito na cadeia significante. Joe pergunta a Deckard se seu
cachorro é de verdade, repetição do filme original quando é
Deckard quem interroga se uma Coruja é de verdade, a resposta de
Deckar é “não importa, pergunte a ele”.
No
Universo de Blade Runner é possível testar uma pessoa ou um
andróide e saber se são ou não reais, com os animais, apenas
microscópios. Entre os animais não há distinção de animais e não
animais. É no imaginário do homo sapiens que surgem as distinções
humano-inumano-desumano-pós humano.Chama a atenção o fato de que,
quando um Blade Runner mata um replicante, isso é chamado de
“retirement”, que em português literal é aposentadoria, uma
espécie de significante encobridor do assassinato. Estando no limite
filosófico e jurídico, os androides são vidas sacrificáveis, ou,
na linguagem de Giorgio Agamben, Homo Sacer, Vida nua sacrificável,
como Wallace demonstra na horrendament bela cena em que uma
replicante nasce, e logo em seguida ele a mata com uma faca. Aqui
citar zizek em visão em paralaxe.
A
questão aqui é que o nosso desejo está alienado ao desejo do
outro, é a pergunta fundamental “Chue vuoi”, o que queres, o que
vês, o que desejas, sendo que o sujeito emite a pergunta e recebe do
Outro sua própria imagem invertida e como diz Nietzsche, se olhares
demasiado dentro do abismo o abismo olhará para dentro de ti, ou o
que Lacan diz no seminário 11 sobre a lata, você olha para a lata e
a lata olha patra você, ou sobre o sábio chinês que sonha com a
borboleta que sonha que é um sábio chinês
A prova é que,
quando ele é a borboleta, não lhe vem à idéia se perguntar se,
quando ele é Chuang-Tsé acordado, ele não é a borboleta que ele
está sonhando ser. É que, sonhando que é uma borboleta, ele terá
semdúvida que testemunhar mais tarde que ele se representava como
borbole ta, mas isto não quer dizer que ele está capturado pela
borboleta - ele é borboleta capturada, mas captura de nada, pois, no
sonho, ele não é borboleta para ninguém. É quando está acordado
que ele é Chuang-Tsé para os outros, e que está preso na rede
deles, de pegar borboletas. É por isso que a borboleta pode - se o
sujeito não é Chuang-Tsé, mas o homem dos lobos - lhe inspirar o
terror fóbico de reconhecer que o batimento das asinhas não é tão
afastado do batimento da causação, da ranhura primitiva queimando
seu ser atingido, pela primeira vez, pela marca do desejo. )Lacan,
S11, p.77
A
ele é ordenado duas vezes que mate Deckard, pela polícia e pela
resistência andróide, primeiro não mata Deckard por crer que ele é
seu pai e depois não o faz,por justamente acreditar que poderia
tramsitir esse afeto a Stallina. Joe é colocado em meio a uma guerra
entre humanos e andróides, a profecia feita por sua chefe é que
quando o muro das espécies caísse haveria uma guerra sem fim. Não
é a toa que a cena em que ele salva Deckard se passa no muro entre o
oceano e a urbe caótica.
A
Raquel bíblica era estéril e morreu ao dar a luz.
Outra
questão importante é que Stellina, a filha de Deckar de Rachael , a
primeira replicante nascida de um útero é uma fabricante de
memórias, e na cena em que encontra Joe pela primeira vez, explica
seu processo de criação de memórias, sendo ela alguém que viveu
em uma redoma de vidro desde os 8 anos , suas habilidades criativas
são muito desenvolvidas, e ademais, explica que as memórias mais
“reais” não são as mais detalhadas, e sim as que estão
conectadas a sentimento, e que são as mais confusas. Isso tem a ver
com as lembranças encobridoras , a lógica do fantasma e a
identificação. Se joe tem consciência de suas memórias
implantadas, ao mesmo tempo parece conformado com isso... o que o
perturba é suas memórias corresponderem com a realidade
Nada
é idêntico a si mesmo.Ela diz que já que os replicantes tem uma
vida dura e um futuro incerto pelo menos que eles tenham boas
memórias. Aqui vemos a interessante dsicussão sobre a atualização
das experiências, que Lacan chama atenção no seminário 2, as
memórias não pertencem ao “passado” e sim elas sempre surgem
atualizadadas no presente, sempre novas narrativas submetidas aos
distintos posicionamentos na cadeia simbólica.
Segundo
sabemos por Stellina, implantar memórias “reais” em replicantes
é ilegal, e talvez o tenha sido após o grande apagão, pois no
primeiro filme Deckard provoca angústia em Rachael ao revelar que
suas memórias são da sobrinha de Tyrrel
As
memórias que Joe tem implanttadas, por algum mistério, são as
memórias dela, como se ele fosse o portador de uma mensagem
ambivalente, o sujeito da carta roubada, da mesma maneira que quando
ele faz uma suposta descoberta que o leva a pensar ser o filho de
Deckard, tudo parece cedo demais, e , na verdade é o resultado da
estratégia de Deckard de embaralhar as informações para esconder
sua filha: no arquivo estavam dois registros de DNA, de homem e de
mulher e o da mulher constava como morto, a memória de Joe era de um
menino, o segredo esteve sempre com ele assim como Stallina sempre
esteve escondida bem debaixo do Nariz da corporação Wallace, como a
carta
O que senti ao ver, ouvir, ao sentir os tremores no chão
da sala de cinema foi puro desespero, como se meus olhos fossem
furados e eu ficasse cego como o personagem Wallace, e, a partir do
pesadelo da distopia a narrativa encerra com a utopia da morte
tranquila sob o som de Vangelis enquanto o taciturno Deckard
vislumbra a utopia no olhar de sua filha.
Nesse
momento 30 anos da minha vida de amor ao cinema se miisturaram como
lágrimas na chuva.