Não fuja da luta, covarde

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Empate

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Proposta de Minicurso na ABRAPSO:Violência, ideologia e mídia no contemporâneo

A violência e suas distintas formas de mal-estar é uma das grandes expressões significantes do contemporâneo. A palavra violência em suas concepções linguageiras é inaugurada do prefixo ambivalente “vis”, em latim “impulso vital”, virilidade, intensidade. Na entrada anfiteatro Flaviano, chamado séculos depois de “Coliseu” estavam fixadas placas que diziam “violentia” referindo-se ao entretenimento preferido do Império: o espetaculo sangrento de cristãos, judeus ou condenados se degladiarem até a morte ou serem estripados for leões famintos. A violência, pois, desde um passado milenar está inscrita em um simbólico sangrento e paradoxal, constituinte da cultura humana. Entre a sociedadade patriarcal dos romanos, o incesto, o estupro e o cárcere privado de mulheres eram constituintes “socialmente aceitos” e legitimados na estrutura social.

Slavoj Zizek em um documentário chamado “A realidade do virtual”i chama atenção para a relação entre a teoria da Relatividade de Einstein e a revisão da teoria do trauma de Freud. Einstein imaginava inicialmente que o espaço era plano e que a matéria provocaria uma curvatura geradora da própria gravidade. Posteriormente, o físico alemão percebeu que não era a matéria que curvava o espaço, ele já era curvo.No emblemático caso Caso do Homem dos Lobos Freud percebeu que o menino havia presenciado a cena do coitus a tergo, porém ela tornou-se traumática anos depois, ou seja, não é o trauma que provoca um rompimento no psiquismo e sim vem a condensar e deslocar afetos primordiais já existentes.

A violência em nossa cultura não é um trauma que irrompe com uma susposta ordem pacífica, e sim a paz é uma ilusão sintomática que sustenta um real aterrorizante gerador de mal-estar. Após vivenciar os horrores da primeira guerra mundial, e em pleno interstício entre-guerras no qual se respirava a ascenção do nazi-fascismo e o recrudescimento do anti-semitisno Freud parte da metapsicologia para dedicar-se pensar as interfaces e dobras entre o inconsciente e a sociedade, culminando na obra “Mal- estar na cultura” em alemão “Das unbehagen in der kultur”. Uma de suas primeiras traduções para o inglês ganhou o título de “Civilizations em their discontents”, gerando uma polissemia de termos entre “desconforto”, “mal-estar”, “desamparo”, “cultura”, “civilização”. A obra da seqüencia a “Além do princípio do prazer”, “Psicologia das massas e a análise do eu”, “Totem e tabu” e “O futuro de uma ilusão”, e o que podemos extrair de tais obras é que o Humano guarda resquícios de suas origens primitivas (primatas) e que o papel imaginado da Ciência, da Culura e da Religião como civilizadores ou subimadores dos impulsos agressivos e destruidores não só fracassa parcialmente como produz, paradoxalmente, mais violência e destruição. Os seres humanos experimentam impulsos tanáticos e eróticos , amor e ódio entrelaçam-se em sadismo e masoquismo, e os desejos de dominação submisssão produzem uma sociedade pós- traumática que, na busca pelo prazer só encontra a infelicidade.
As intuições visionárias de Freud de“Totem e tabu” e do “Mal Estar na Cultura” encontraram ressonâncias e desdobramentos nos trabalhos mais recentes de observação de comportamentos gregários e violentos nas outras quatro espécies de grandes primatas (chimpanzés, orangotangos, gorilas e bonobos) e nas chamadas sociedades primitivas sobreviventes ao extermínio. Os estudos de Franz de Waaal e Richard Wranghan e Dale Peterson lançaram uma luz sobre os terríveis comportamentos homicidas infanticidas e estupradores das comunidades de Chimpanzés do Zaire (que outrora eram considerados seres pacíficos) gerados pela dominação masculina e o cio que é quando a fêmea entra em período fértil os machos são inexoravelmente atraídos por seus odores e entram em disputas físicas para quem a estupra e transfere seu material genético em primeiro lugar.As observações destes cientistas dos Chimpanzés levaram a elaboração da teoria do “Macho demoníaco” e foram comparados com estudos em comunidades humanas primitivas que concluíram que não há cultura sem estupro, infanticído e homicídio.Contudo, as pesquisas também levaram a descoberta do “primata cordial” quase gêmeo genético dos chimpanzés chamado de macaco bonobo. Os bonobos eliminaram o cio de sua cadeia evolutiva, juntamente com a dominância masculina, o estupro, o homicidio e o assassinato de filhotes, constituindo comunidades sexualmente liberais, feministas e de amor livre.
Não é difícil imaginar que os estudos em primatologia colocaram o Homo Sapiens em um ponto médio entre o chimpanzé e o bonobo. Somos criaturas extremamente violentas, porém não possúimos o cio, guardamos resquícios de ambas as espécies o que poderia ser escrito nas duas faces de uma fita de Moebius1:as fêmeas humanas, liberadas do cio, poderiam ser todas sexualmente liberadas, bem como os machos não se sentiriam impelidos a violenta-las, porém, o que acontece é o Mal-Estar: o estupro e o machismo são elevados a um nível de requinte e perversidade no Homo Sapiens jamais imaginad--o pela inteligência prática e imediata de nossos ancestrais; Cultura gera selvageria.
É o caso exemplar e paradoxal do Austríaco Josef Fritzl

Nascido na Áustria, Josef Fritzl era visto pelos vizinhos e pela esposa como um trabalhador, pai zeloso e exemplar, quie após o desgostoo com o fato sua filha Elizabeth ter fugido de casa e se juntado a uma seita, Fritzl, com a aceitação do Serviço Social austríaco adotara três filhos que foram colocados na porta de sua casa. Em 2008 a verdade veio à tona: Elizabeth tentara fugir de casa após o pai tentar abusá-la recorrentemente, e Fritzl a trancou no porão de casa e a manteve presa no escuro por 24 anos estuprando-a recorrentemente e gerando 7 filhos, um dos quais morreu no parto três foram aqueles adotados oficialmente e criados por ele e a esposa e outros três ficaram com Elizabeth no cativeiro.
Em nosso imaginário popular é muito recorrente a fantasia de que o estupro é um crime fortuito protagonizado por um agressor desconhecido a uma vítima aleatória e que experimenta a ideia original de trauma: uma pessoa normal que sofrea a agressão bárbara de um desconhecido ameaçador e experimenta os sintomas adequados ao trauma. Relatos policiais e de trabalhadores da saúde que lidam diretamente com a violência sexual mostram o oposto: o abuso sexual é um crime recorrente em ambiente privadoe que os agressores, em sua grande maioria são conhecidos ou parentes das vítimas: avôs, tios, vizinhos, amigos da família, pais ou padrastos que obtém o concentimento das vítimas por sedução material, ameaças, intimidação, barganha. Na metáfora usada por Zizek, o espaço social e subjetivo de uma vítima de estupro já é traumático e o ato em si é mais consequencia do que causa.
Josef Fritzel é um caso exemplar e radical:
“O caso de Fritzl valida o trocadilho de Lacan entre perversão e père-versão, uma versão do pai. Não é fundamental notar que o apartamento subterrâneo materializa uma fantasia ideológico-libidinal muito precisa, uma versão extrema do prazer-dominação-pai? Um dos lemas de Maio de 1968 era “todo poder à imaginação”; nesse sentido, Fritzl também é um filho de 1968 que realizou impiedosamente sua fantasia. Por isso, é enganoso, e impiedosamente errado, chamar Fritzl de “inumano”; no mínimo, para usar o o título de Nietzsche, ele poderia ser chamado de humano, demasiado humano.” Não admira que Fritzl se queixasse de que sua vida foi arruinada pela descoberta de sua família secreta. O que torna seu reinado tão medonho é justamente que seu exercício de poder e seu usufruit da filha não eram apenas um ato frio de exploração , mas eram acompanhados de uma justificativa ideológico-familiar (ele fez o que todo pai deveria fazer, proteger os filhos das drogas e de outros perigos do mundo) além de demonstrações ocasionais de compaixão (ele levou a filha doente ao hospital, por exemplo). Esses atos não foram brechas de humanidade calorosa em uma armadura de frieza e crueldade, mas partes da mesma atitude protetora que o levou a prender e violentar seus filhos. (ZIZEK, 2014, p.58)

Em 2014 cineasta austríaco Ulrich Seidl, inspirado em Fritzl e em outro sequestrador hediondo compatriota chamado Wolfgang Prikopil, que em 1998 sequestrou Natascha Kampush e a manteve em cativeiro sob estupros recorrentes por 8 anos, produziu documentário “Do porão”cuja proposta é desvelar os as pequenas perversões s nos porões das famílias austríacas de classe-média: nazismo, sado-masoquismo, misoginia, culto as armas, sodomia.
Seidl trabalha com uma metodologia não dicotômica entre documentário e ficção, os personagens e suas peculiaridades são reais mas as performances cênicas são, segundo ele, “ficcionalizadas”, poderíamos colocar aqui realidade e ficção nos lados de uma fita de moebius. Três histórias contadas no filme chamam a atenção.
1-um casal sado-masoquista em que a mulher é extremamente amorosa, rigida e dominadora de um marido gigante porém dócil e submisso. Ela o obriga a andar nu pela casa com pesos nos testiculos e a limpar o banheiro com a língua.Quando o amor e a dominação são muito fortes, eles entram no porão onde estão todos os instrumentos de tortura e prazer, onde Seidl filma uma sessão em que o marido é suspenso no ar pelo pênis.
2- Um senhor de idade reune sua bandinha germanica para comer, beber, tocar e jogar conversa fora em um porão repleto de relíquias nazistas e com um imenso quadro de Hitler na parede.
3- Uma mulher nua e amarrada por várias cordas de “boundagismo” conta a história de seu casamento e de como o marido alcoolista a espancava até o ponto de ela um dia enfiar uma faca nas suas costas e fugir com a filha tornar-se adepta do sadomasoquismo. Seu primeior dominador a fez experimentar todas as formas de dor e prazer até que um dia exagerou e a obrigou a ir para o hospital toda ensanguentada. Hoje ela pratica com um novo mestre chamado Walter e trabalha para a Caritas ajudando as mulheres vitimas de violência.Seidl mostra uma sessão de dominação na qual o mestre Walter bate no traseiro dela com um chicote, e logo em seguida dá continuidade ao depoimento no qual ela diz que não gosta de homens machistas porém para ela os homens precisam ser fortes e dominadores. 
Neste caso podemos colocar o caso desta mulher e sua relação da violência e dor nos lados de uma fita de papel quando ela era espancada pelo marido, proceder a dobra de moebius quando ela descobre o sadomasoquismo e cortar a fita duas vezes ao meio, provocando primeiro uma torção e seguindo a produção de dois anéis entrelaçados.
A violência aqui mais uma vez não constitui em um evento traumático na vida de uma vítima, e sim um espaço curvado e caótico no qual o sujeito escava seu desejo e produz dobramentos e metamorfoses. O mal-estar aqui não está na violência física em si porque esta é reelaborada e ressignificada, encaixando-se em um sinthoma (diferente de um sintomal queixoso). Nos dois casos anteriores o impacto visual de um homem limpar um banheiro com a língua ou ser suspenso no ar pelo seu pênis é muito mais forte do que o quadro de Hitler como pano de fundo para o banquete de simpáticos cidadãos austríacos.
Aqui, além da ideia de um sujeito pós-traumático vemos evidenciadas as sínteses de Zizek sobre os tipos de manifestação da violência: estrutural, subjetiva e simbólica.
No caso da bandinha neonazista temos uma estrutura social de antisemitismo e culto ao Holocausto obscurecidas pela simpatia e a diversão, enquanto no casal sadomasoquista violência provoca no especctador muito mais impacto estético e moral. No caso da mulher amarrada a trajetória do sujeito é complexificada por uma violência física que dobra e desdobra seus sentidos: ser espancada e dominada sem consentimento e com um atravessamento machista, ser espancada e dominada com uma dose excessiva de libido e ser dominada espancada com consentimento e regras bem estabelecidas e uma dialética entre dominador e dominado.
A cultura é geradora de mal-estar e paradoxos entre a busca pelo prazer, a felicidade e a dor em um mundo caótico de sujeitos desejantes.Nosso minucurso pretende fomentar o debate e mostrar a produção do LEXPARTE (Laboratório de Extensão e Pesquisa em Psicanálise e Arte) da FURG

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