Durante algum tempo escrevi uma coluna no Jornal Agora, de Rio Grande, chamada Crônicas Invisíveis. A ideia inicial seria uma espécie de sessão de Psicologia mas o monstro literário deformado que habita em mim converteu o espaço em algo "imprevivisível", Abaixo uma das minhas favoritas, muito contemporânea, escrita em maio de 2012
No conturbado e simbólico mês de maio, dois eventos sociais
entrecruzaram-se em meus universos de referência: no dia 17 foi deflagrada
nossa greve, e no Centro Cultural Santander, em Porto Alegre, aconteceu a
mostra “Apocalipse Zumbi”, cuja programação consistiu em 08 filmes produzidos
apenas no ano de 2011, todos eles variando sobre o mesmo tema dos
“mortos-vivos”.
Mas como assim mortos-vivos?
Meus dedos percorrem o teclado, pressionam a tecla
backspace, percorrem novamente as teclas...Vozes internas fazem e refazem as
idéias... pensam e repensam...Penso, respiro, movo as pernas para
certificar-me... De que elas estão se movendo aos meus comandos.E o que comanda
os dedos, as pernas, a respiração? O cérebro, inexoravelmente é o cérebro que
comanda tudo, as células nervosas, os potenciais de membrana, as fendas sinápticas. Estou vivo
porque o coração bate, o pulmão infla, o sangue irriga o cérebro e permite que
o pensamento saiba que estou vivo. Prefiro, na maioria das vezes não pensar em
como seria se o cérebro parasse de produzir eletricidade e o pensamento
parasse...Mas, afinal, que lacuna é essa entre o espaço sináptico e a língua, a
fala, o discurso, a construção de uma
teoria sobre o mundo, o conceito de vida e
de morte?
A neurociência e a psicologia dobram-se e desdobram-se em
cartografar o portal desconhecido entre o corpo e o pensamento, e como no
paradoxo de Zenão, quando estão a meio centímetro entre Aquiles e a Tartaruga,
precisam percorrer ainda metade do caminho para chega lá.
Por enquanto, nos resta viver, e pensar sobre a vida. O
pensamento, a ideia, a filosofia o conhecimento, carregam o cadáver biológico
no temporalizar e espacializar da existência.
O corpo sem pensamento
e sem movimento é um cadáver, e enquanto ele não se dissolve nas redes
biológicas, é mais imóvel que a mais antiga das rochas.
Agora, o que acontece quando o corpo se move sem o
pensamento, sem a existência, sem a vida? Mary Sheley, em seu fantástico
romance, conta a história de um cientista que costurou partes de corpos mortos
e, ao alimentá-los com descargas elétricas, deu animação a um protosujeito, uma
criatura ao mesmo tempo orgânica e automática
Lendas antigas vindas do continente africano versam sobre
feiticeiros cujos poderes ocultos fazer os mortos emergirem da terra e
caminharem sob seu controle, e a estes corpos que andam é dado o nome de
Zumbis, ou Zombies.
Desde os anos 60, o cinema de Hollywood produz histórias
sobre experiências científicas ou acidentes bioquímicos geradores de massas
ululantes de cadáveres moventes e aterradores, que atacam populações de classe
média em cenários pequenas cidades, invadem cotidianos e se reproduzem por
contágio. Meu filme preferido deste gênero é “A Volta dos Mortos-Vivos”, cujos
zumbis são gerados por um gás tóxico oriundo de uma arma biológica e percorrem
as ruas alimentando-se de cérebros. Quase todo o roteiro consiste em pessoas
vivas sendo perseguidas pelos zumbis que se multiplicam por contágio, ou seja,
quando um ser vivo tem seu cérebro comido, torna-se um morto-vivo.
Nosso grande guru filosófico Slavoj Zizek assistiu a este
filme, e, como bom filósofo vivo, pergunta-se: um ser vivo pertence ao mundo
dos vivos, ele pensa, discursa, respira, imagina projeta universos e utopias; O
cadáver é pouco mais do que uma pedra que não rola...
O morto-vivo é uma terceira categoria, que não pertence nem
aos vivos nem aos mortos, que vive com apenas um objetivo: prosseguir
diligentemente na tarefa de saciar uma fome paradoxal, visto que, enquanto
morta não necessita de alimento. Mas afinal, na sua errância cadavérica, o
morto-vivo nunca para para pensar por quê come cérebros sem precisar comê-los,
ou nunca para para pensar porque nunca para para pensar.
Zizek produz a analogia dos zumbis com a das pessoas que
perderam a memória por tragédias biológicas, ou as eternas vítimas das grandes
catástrofes, os escravos contemporâneos ou aqueles trabalhadores que não detém
a propriedade intelectual daquilo que fazem, os novos proletários. Os zumbis da
contemporaneidade são protocidadãos que habitam cidades, fábricas, empresas e
circulam pelas ruas, consomem, caminham, ocupam espaço, porém desprovidos da
paralaxe entre o cérebro e o discurso.
O morto-vivo apenas prossegue...
Agora, o que isso tem a ver com a Universidade os dias de
hoje?
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