Todo mundo está se perguntando como e
de onde todos vieram
Todos estão preocupados em saber para
onde irão quando tudo acabar
Mas ninguém sabe ao certo
Então para mim dá tudo no mesmo
Acho que vou deixar o mistério rolar
Alguns dizem que quando você morre é
para sempre
Outros que você vai voltar
Alguns dizem que descansará nos braços
do salvador
Se não tiver andado em caminhos
pecaminosos
Outros que eles voltarão ao jardim
Cheio de cenouras e ervilhas deliciosas
Acho que vou deixar o mistério rolar
Música de abertura da segunda temporada
14 de outubro, 140 milhões de pessoas
sumiram e ninguém sabe para onde, um feto desaparece da ecografia,
um policial sofre de sonambulismo e seu pai ouve vozes e é internado
em um hospício, milhares de pessoas abandonam a família passam a
vestir-se de branco, fumar compulsivamente e param de falar. Um homem
passa a caçar cachorros e em uma cidade inteira do Texas que não perdeu nenhum habitante exige
pulseira para seus visitantes pessoas vêem o futuro, ressuscitam dos
mortos. Pessoas lutam para esquecer e lutam para lembrar e em algum
lugar entre a Tasmânia e a Austrália um assassino que diz ser Deus
lê seu livro em meio a orgia de adoradores de leões. Subitamente o
ator da série “primo cruzado” aparece na trama no papel dele
mesmo.O Deus assassino é devorado por um leão. O policial que sofre
de insônia morre e ressuscita duas vezes e o mundo dos mortos é
visto como um grande hotel onde ele tem que cumprir missões e na
segunda ressurreição ele canta no karaokê a música de Simon e
Garfunkel Homeward Bound. A morte é vista como um sonho.
Eu gostaria de começar meu texto sobre
a série “The leftovers” com um questionamento sobre a realidade
que vivemos, ou melhor, vivenciamos. Na série exibida pela HBO, há
uma referência explícita a um fenômeno bíblico chamado “O
grande arrebatamento”, como mostra esta passagem:
Dizemos a vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que dormem. Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que estivermos vivos, seremos arrebatados com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre.
1 Tessalonicenses 4:15-17
No dia 14 de outubro 2 por cento da população mundial simplesmente desaparece sem deixar vestígios, assim, do nada, e o enredo trata da vida daqueles que “ficaram”, partindo do pressuposto de que os desaparecidos foram a algum lugar. Em um primeiro momento poderíamos pensar em um argumento clássico de que as pessoas viviam suas vidas normais até que o arrebatamento trouxe o caos à vida das pessoas, a clássica ideia de que um evento traumático que produziu um sintoma. Pois é aqui que a diretora e seus roteiristas literalmente arrebatam nosso senso comum.
Dizemos a vocês, pela palavra do Senhor, que nós, os que estivermos vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, certamente não precederemos os que dormem. Pois, dada a ordem, com a voz do arcanjo e o ressoar da trombeta de Deus, o próprio Senhor descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que estivermos vivos, seremos arrebatados com eles nas nuvens, para o encontro com o Senhor nos ares. E assim estaremos com o Senhor para sempre.
1 Tessalonicenses 4:15-17
No dia 14 de outubro 2 por cento da população mundial simplesmente desaparece sem deixar vestígios, assim, do nada, e o enredo trata da vida daqueles que “ficaram”, partindo do pressuposto de que os desaparecidos foram a algum lugar. Em um primeiro momento poderíamos pensar em um argumento clássico de que as pessoas viviam suas vidas normais até que o arrebatamento trouxe o caos à vida das pessoas, a clássica ideia de que um evento traumático que produziu um sintoma. Pois é aqui que a diretora e seus roteiristas literalmente arrebatam nosso senso comum.
Nosso corpo vem de uma única célula
que cumpre um programa genético específico, porém em interface
membranosa com um “fora” que nos penetra em diferentes modos de
invaginação, desde as entradas e saídas de substâncias da
célula, suas excreções até a formação de um corpo complexo
dotado de pele, pulmões, sistema digestivo, visão e audição. Em
muitos níveis de percepção o “dentro” e o “fora” não são
distinguíveis, mas nesta “realidade” vivida existe o “dentro”
e o “fora” do corpo. O ponto é que só posso escrever ou pensar
nesta realidade a partir de um ponto de vista filosófico ou científico, que são sistemas de linguagem e esta linguagem está inscrita em um bordado de
significações que pertencem a minha cultura, minha sociedade e à
maneira como eu sou capaz de operá-las desde que iniciei o
desenvolvimento daquilo que alguns chamam de mente, alma, psiquê,
sistema cognitivo, mundo vivido, etc. Este mundo vivido colocado em
pensamentos, conceitos e palavras é um mundo que posso transitar no
tempo, no espaço, mas memórias, nos textos, na internet e em tudo
mais da produção humana e esse trânsito existe no registro do
simbólico. Estamos mergulhados no simbólico, e não foi uma tarefa
fácil chegar a esse ponto partindo de uma criatura nascida apenas
com células.
No mundo dos adultos que compartilham
plenamente da linguagem a realidade é plena de segurança
ontológica: vivemos neste mundo, neste universo, nesta “realidade”
e ela sempre foi assim, em termos individuais e coletivos, todos nós
temos uma história que nos trouxe aqui e vivemos em uma vida
“normal” e os eventos estranhos a esta realidade psíquica
vivida são anomalias, .doenças, “traumas”. Um trauma, no
cotidiano, é um evento que provoca uma ruptura em algo estável e
“normal” e que produz sintoma.
Pois é justamente o oposto, o enxerto
de um sistema simbólico como o que vivemos representa uma intrusão
radical, uma fenda sígnica tão grande que faz com que tenhamos que
recorrer de palavras e conceitos para entender nosso próprio corpo
ou mesmo o ar que respiramos, e o fazemos de maneria extremamente
precária, visto que o sistema simbólico mais confiável para isso,
a ciência, com todas suas vicissitudes, existe a poucos séculos em
uma humanidade que está aqui há milênios.
Podemos pensar, então, a realidade
psíquica como um imenso buraco no qual um evento traumático não é
nada além de uma intrusão do real que vem a chacoalhar as bordas e
reposicionar o simbólico e reordenar um espaço subjetivo.
A realidade em si é caótica, o trauma
apenas se encaixa nela. De seres falados para seres falantes todos sofremos o arrebatamento do sentido.
È isso que os habitantes das cidades
americanas de Mapleton e Miracle experienciam, não a loucura, mas
sim uma dança das cadeiras de todas as “loucuras” pré
existentes ao grande arrebatamento.
A pergunta mais óbvia a ser feita na
série é sugestivamente colocada de lado, assim como no conto da
carta roubada de Poe Dupin fala de um jogo de ler nomes de países em
um mapa onde as letras maiores não são vistas: o que aconteceu? Por
que houve o arrebatamento ou por que aquelas pessoas específicas?
O vazio é colocado ali de propósito
para que o universo do símbólico transite , ou como diria Suassuna
“ao redor do buraco tudo é beira”.
O tema das grandes catástrofes é
recorrente na historiografia cinematográfica desde os monstros como
King Kong, Godzilla até fenômenos como incêndios, vulcões de
terremotos e chega aos dias de hoje às séries como The Walking Dead
com um fio condutor comum: a aparente inexorabilidade ou falta de
sentido dos eventos devastadores que, por fim, aparecem ao mesmo
tempo como tangenciais e mote do enredo de fundo: relações
amorosas, políticas e familiares. Zizek, no filme “Guia do
pervertido sobre cinema” interroga sobre Titanic: o filme narra uma
história de amor sob o fundo do desastre, mas se o navio não
tivesse afundado o amor dos protagonistas teria atravessado as
décadas?
O que representa um grande evento
singular na série “The leftovers”, repleta de personagens
paradoxais, idiossincráticos e complexos, que agem e reagem de
maneira tão singular na composição da trama? Talvez possamos
trazer aqui uma das obras mais comentadas, elaboradas e
representativas do cinema catástrofe que também mostra uma teia de
relações humanas atravessada por um evento sem sentido e mortífero
“Os pássaros”, onde um homem solteiro que vive com a mãe e a
irmã encontra uma mulher forte e independente em uma loja de
pássaros, surge uma tensão sexual entre ambos e , quando ela
resolve visitá-lo na pequena baía do interior da califórnia,
subitamente todos os pássaros da região atacam ferozmente a
população.Não por acaso, os pássaros que ingressam violentamente na casa do protagonista se chamam merlos, em inglês "lovebirds' pássaros do amor, emissários do transbordamento da libido.
Zizek , a partir de um autor chamado
Robin Wood que sugere três interpretações possíveis da trama , a
cosmológica, a ecológica e a familiar. A cosmológica diz respeito
ao próprio universo hitchockiano e trata do evento traumático como
desvelador de uma realidade recalcada na aparente normalidade das
relações familiares, a ecológica é da inevitabilidade da reação
da natureza ao humano e a familiar, na qual a chave do filme está
nas tensões familiares e que ataque dos pássaros representaria o
elemento desagregador e discordante
Mas , afinal, pergunta Zizek, por que
atacam os pássaros? Por que em “The Leftovers” as pessoas são
arrebatadas? A proposta de Zizek é que retiremos o grande evento
catastrófico da trama. Os pássaros sem pássaros e “The
leftovers” sem o sumiço, pois ambos os eventos parecem servir de
véu encobridor de toda a complexidade subterrânea, exatamente como
a velha teoria do trauma. A dimensão do traumático não é do
trauma, é o mundo subjetivo que é traumático, daí a passagem que
freud faz pela homofonia entre o traum do trauma e o traum do sonho
e, afinal, o que somos nós senão seres feitos da matéria dos
sonhos, como diz Shakeaspeare, efeitos de um grande vazio que nos
convoca a presença, e o Outro não será o mero contorno imaginário
do apagamento que esconde um abismo?
O protagonista da série Kevin Garvey, descobre que pode morrer e rescuscitar quase como alguém que dorme e sonha, e o suposto mundo dos mortos é exatamente igual ao nosso, porém com todos seus personagens e enredos embaralhados, reconfigurados,e , da realidade do filme a realidade do mundo dos mortos á um real que traumatiza e provoca o reordenamento das peças no simbólico, por isso o sonho é a realização de um desejo, como diz Freud quando mostra as condensações e deslocamentos dos personagens oníricos:um tio vira um pai, uma mulher são três, o pai está morto e não sabe..
E como temos acesso ao sonho? Ao seu resquício, seu rascunho, seu contorno rasurado na palavra.
O protagonista da série Kevin Garvey, descobre que pode morrer e rescuscitar quase como alguém que dorme e sonha, e o suposto mundo dos mortos é exatamente igual ao nosso, porém com todos seus personagens e enredos embaralhados, reconfigurados,e , da realidade do filme a realidade do mundo dos mortos á um real que traumatiza e provoca o reordenamento das peças no simbólico, por isso o sonho é a realização de um desejo, como diz Freud quando mostra as condensações e deslocamentos dos personagens oníricos:um tio vira um pai, uma mulher são três, o pai está morto e não sabe..
E como temos acesso ao sonho? Ao seu resquício, seu rascunho, seu contorno rasurado na palavra.
Na segunda e na terceira temporadas a
abertura da série possui uma ironia dissonante de várias imagens de
álbuns de fotografia mostrando casais, famílias, amigos, crianças
e na imagem dos arrebatados só resta o contorno, afinal, não temos acesso a este outro senão pela camada acima da pele? E não é o mesmo com o sentido de uma palavra dita ou escrita?
Leftovers mostra a dialética entre
lembrar e esquecer, entre a essência e a imagem de um semblante, o
arrebatamento como a intrusão do real em um espaço já invadido,
afinal, todos vamos desaparecer um dia para alguém e isso não fará
mesmo nenhum sentido.
Termino com a citação da amiga poeta
psicóloga e colega de laboratório Daniela Delias, que escreveu no
Facebook sobre a série em 16 de Julho de 2017:
“Qual
o sentido da existência frente à morte, ao que não se
controla ou explica? Lembrar? Esquecer? Matar-se? Seguir em frente?
Entregar-se a deus? Sabê-lo morto? Correr mundo afora (e adentro)
atrás de uma resposta? Uma discussão absolutamente fantástica
sobre o real e o sonho, embalada por uma trilha musical e atuações
magistrais. É preciso passar por uma primeira temporada não tão
instigante até chegar neste ponto em que o nosso próprio
arrebatamento torna-se inevitável.
Referência.
Zizek, Slavoj
(compilador) Todo lo que usted siempre quiso saber sobre Lacan y
nunca se atrevió a preguntarle a Hitchcock. Buenos Aires, Manantial,
2013.
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