Não fuja da luta, covarde

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Empate

sábado, 5 de maio de 2018

Pausa para Dostoievski



Alunos que tem boa cultura certamente tem mais facilidade com o resto. Quer dizer,uma planta pode crescer só com terra e água, mas com um bom adubo orgânico ela fica bem maior e mais viçosa.Guattari chama isso de “universos de referência”, linhas de fuga, espaços nos quais podemos colocar em perspectiva os conhecimentos teóricos e técnicos e tornar nossa experiência no mundo mais complexa e heterogênea. Dentro das minhas atividades docentes, e enfim, também daquelas que propus durante a greve, e outras tantas que estão ocorrendo no acampamento estudantil, boa parte envolve a exibição de filmes ou a leitura de alguns clássicos da literatura. Pode-se perceber que, no mundo acadêmico, um grande abismo surge entre o operário trabalhador acadêmico, e o chamado pensador intelectual. Nós, doutores, os cérebros mais treinados e capacitados da terra (?), paradoxalmente estamos perdendo nossa capacidade de pensar, pela exigência cada vez maior de produção numérica e burocrática pautada em prazos, e também pela especialização.Creio que isso é um ponto de pauta importante a ser discutido em tempos revolucionários de greve...
O operário-padrão do conhecimento deve ter seu intelecto restrito ao seu escopo de pesquisa. O resto é ócio.
Pois eu não concordo com isso. Minha idéia de educação é complexa, e principalmente na minha área, a Psicologia, quanto mais Universos e modos diferentes de pensar, mais o pensamento e as relações humanas adquirem a capacidade de se reinventar. Pois falemos de Dostoievski.
Fiodor Dostoievski (1821-1.881), escritor russo, autor de obras como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, O Idiota, ´é considerado um dos maiores expoentes da literatura mundial ao lado de Shakespeare, Proust, Tolstoi entre outros. Sugiro, para começar, "Notas do Subsolo" e "Memórias da casa dos Mortos" (que estou lendo agora). São baratinhos e fáceis de ler.
"Notas do Subsolo", ou dependendo do tradutor, "Devaneios do subterrâneo", "Notas do subterrâneo e por aí vai", doravante o título, me puxou para o andar de baixo, ou pelo menos mostrou o chão que está acima de mim.

O filósofo Mikhail Bakhtin construiu uma grande obra inspirada no escritor russo, considerando seus romances polifônicos e dialógicos, polifônicos pelo fato de o escritor ser uma espécie de consciência das consciências de seus personagens, que, segundo Bakhtin, adquirem independência no discurso... Dialógicos pelo fato de os personagens, alguns formadores de um discurso próprio, teórico, e que produz fissuras nos outros personagens´, e no caso do "Notas...', no próprio leitor. O livro começa com um diálogo direto do personagem, que não possui nome, com o próprio leitor, onde ele apresenta "o subsolo", ou seja, o lugar de ode ele se posiciona, sua visão de mundo, seu estado de espírito. "Sou um homem doente, sou mau", é a primeira frase do texto, e prossegue um diálogo cuja tônica é habitar o subsolo, o subterrâneo, o lugar do discurso além da moral, em que o personagem se mostra como herói como questionador da humanidade da hipocrisia, mas ao mesmo tempo se acovarda... Ele chega a dizer "Pressupomos que o homem seja inteligente, pois se ele for idiota, quem mais consideraremos inteligente?".Define o homem como um ser "bípede e ingrato", assume a postura de subsolo ainda que no final, diga que não acredita em UMA palavra que escreveu, e, na conclusão escreva as incríveis palavras: “é melhor não fazer nada! È melhor a inércia consciente!Pois, então viva o subsolo! Apesar de eu ter dito que invejo o homem normal até a minha última gota de fel, nas condições em que o vejo, não quero ser ele"...
Dostoievski é impressionante. Suas narrativas são simples, porém descrevem personagens complexos e que tem vida própria.
Em “Memórias da Casa dos Mortos”, a história é contada por um personagem que lê um diário de um detento em uma prisão na Sibéria.Neste livro dentro do livro, é descrita a rotina da cadeia, com pormenores sensíveis e cotidianos.Em meio a esse cotidiano, aparecem as vidas, pensamentos, morais, sentimentos e conflitos de cada personagem, como se eles tivessem vida. Em Dostoievski, os personagens assumem discursos e falas que são independentes da narrativa e do narrador, como se fossem vivos. Cada idiossincrasia da prisão é trabalhada com detalhes e sob a perspectiva da multiplicidade subjetiva e heterogênea dos detentos e seus modos de funcionar, o que dá ao ambiente carcerário uma idéia de multiverso: o verão, o inverno, as festas, os conflitos, as penas e seus múltiplos delitos e suas motivações, castigos, o hospital...
Sendo o livro dentro de outro, ainda há mais histórias dentro de histórias e o leitor é habilmente conduzido a dialogar e quase nos esquecemos que apenas uma pessoa as escreveu, ou, desta maneira, abre-se a possibilidade ao leitor de construir este diálogo.
E, quem sabe, não podemos usar Dostoievski como metáfora para nossos fazeres pedagógicos, e, em meio a prisões curriculares e suas rotinas sufocantes deixemos as vozes de nossos alunos dialogarem e possamos nos perder em nossas polifonias?

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