Não fuja da luta, covarde

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Empate

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A complexidade do amor livre: versão do diretor




Escrever ou falar sobre amor livre é, como diz o título, uma tarefa complexa. Diz o pensador Edgar Morin que a complexidade, além de referir-se às múltiplas variáveis  e circunstâncias com as quais nos deparamos ao analisar um objeto de conhecimento, também é uma característica das nossas capacidades perceptivas de observadores. Podemos observar um objeto como  unidade ou como complexidade.Amor e liberdade também são palavras, e também são complexos. Todo mundo sabe o que é o amor; o mesmo vale para liberdade.
O amor é um sentimento que todos sentem de alguma forma: por outras pessoas, instituições, causas, teorias, religiões, animais, músicas, bandas de rock, tantos quantos forem os eventos deste nosso mundo humano, todos são amáveis.  O mesmo vale para a liberdade, mesmo para quem vive confinado em uma cela ou vítima da escravidão  a ideia de liberdade existe ao menos como utopia, ou sonho.


Liberdade e Amor, assim, são palavras simples, todo mundo sabe o que elas significam...
Então vamos lá amor é....


Liberdade é...


Quando abandonamos o dicionário e perscrutamos a multiplicidade da experiência humana, é a complexidade que vêm á tona, o simples é complexo e o complexo é simples.
É com tais paradoxos que eu, na condição polivalente de psicólogo, psicanalista e professor, me deparo ao pensar o amor, a liberdade e a combinação destas duas palavras.
Na tarefa de escutar pessoas na clínica os paradoxos já residem  na dualidade entre o singular e o social. Cada sujeito estrutura sua experiência de vida e a expressa pela fala  de maneira única e idiossincrática. Aqui já lanço mão de uma de nossas palavras em debate: liberdade. No consultório todos somos livres para falar, sentir, alucinar, delirar enfim, para sermos quem realmente somos. Nenhuma fala é igual a outra, nenhum universo vivido se compara a outro mesmo que sejam falados pelo mesmo sujeito.
Contudo, mesmo o discurso mais original e singular, ou o pensamento mais íntimo e inconfessável é expresso em palavras, e as palavras fazem parte de uma linguagem, uma língua, um idioma. Quando falamos sempre falamos para  ou de alguém ou algo: de nossos pais, filhos, colegas, cônjuges, do governo, da economia, da cidade, do clube de futebol, da televisão...
A escuta da subjetividade sempre transita hipertextualmente entre o social e individual, o singular e o plural, o simples e o complexo. Uma pessoa pode falar de si mesma usando palavras e  sentidos compartilhados com milhões de outros falantes ou, ao revés, pode referir-se o tempo todo a seus amigos ou a sua família, do trabalho ou da política  quando, na verdade, ninguém além dela mesma  e suas fantasias está ali "fisicamente".
Diz o psicanalista Jacques Lacan que a subjetividade pode ser pensada como a Física Ótica pensa o objeto diante de um espelho: há uma imagem que se forma no cérebro, outra no espelho e ainda outra virtual que é simétrica ao objeto e se forma atrás. Não há imagem sem objeto e não há objeto sem conceito.
Quando estamos nos vestindo para uma festa,olhamos a imagem especular e nos sentimos bonitos ou feios, pensando no comprimento ou na combinação da roupa, e também  nas pessoas que estarão na festa, na temperatura do ambiente ou mesmo na adequação da vestimenta ao nosso contexto histórico e social, o que chamamos de moda. O outro sempre está aí mesmo que sejam os outros "lá fora" ou outro "dentro de nós" ou um Outro abstrato no qual por vezes pensamos sem saber... O "individual" e o "social" não são dicotômicos, e sim dobrados, justapostos.
Pois é daqui que parto para falar do Amor Livre, ou do Poliamor, no contexto das relações conjugais, sexuais e afetivas. Nossos ancestrais que habitam ainda este planeta mesmo depois de três milhões de anos produziram dois padrões de comportamento distintos  que caracterizam duas espécies  muito semelhantes em si e conosco: os chimpanzés, que possuem o cio, são machocêntricos, dominadores, possessivos e competitivos e os bonobos, que  são matriarcais, afetivos e aboliram o cio, ou seja, as fêmeas estão sempre disponíveis para a cópula.Dizem os antropólogos que chimpanzés (chamados de "machos demoníacos" resolvem questões de sexo com poder e bonobos resolvem questões de poder com sexo.A conclusão das pesquisas com grandes primatas é que o homo sapiens herdou muitos comportamentos de seus ancestrais ( a maioria deles), e, como os bonobos, não possui cio.Também herdamos a agressividade e o caráter dominante dos "machos demoníacos", contudo, nosso telencéfalo altamente desenvolvido possibilitou que conseguíssemos, em pouco mais de cem mil anos, produzir uma multiplicidade de modos de conviver e  de se comportar que Bonobos e Chimpanzés jamais sonhariam ( se isso lhes fosse possível).

Não sou muito  afeito a elogiar nossa espécie, mas...

Somos as únicas criaturas vivas capaz de viver em um universo distinto da mera  realidade concreta: o universo do Simbólico que possibilita que nossas  ações sejam atravessadas pela linguagem, a política e a cultura.
Chimpanzés e bonobos podem sentir afetos uns pelos outros no terreno no instinto gregário de sobrevivência, mas a invenção humana do amor contempla infinitos modos de ser e pensar:monogamia, poligamia, celibato, sadismo, masoquismo, amor incondicional, romantismo, tragédia...  O homo sapiens é livre inclusive para determinar a própria restrição a sua liberdade, e ao seu amor.
É preciso compreender (e até mesmo saudar )  a chamada  plasticidade relacional que as sociedades humanas alcançaram especialmente nos últimos duzentos anos. Mesmo nos países e regiões do planeta onde  ainda imperam os  regimes obscurantistas vinculados a religiões ou tradições tribais é possível sonhar com  modos diferentes de amor e liberdade, devido ao processo acelerado de mundialização e da noção, ao menos utópica, de direitos humanos universais.
No brevíssimo intervalo de tempo entre o final dos anos 50 até os dias de hoje o que chamamos de humanidade experimentou transformações nos seus modos de ser e habitar o mundo que conseguiram implodir milênios do império dos "homens demoníacos".É a libertação das mulheres o catalisador da verdadeira revolução sexual, como   narra sexóloga brasileira Regina Navarro Lins.
E aqui cito novamente as ideias de Lacan, que nos anos 70 sincronizou a psicanálise freudiana aos movimentos feministas e produziu duas frases de grande impacto pela sua potência conceitual e polêmica semântica: "a Mulher não existe" e "não existe relação sexual". No caso da primeira, ao investigar o que para Freud seriam os mistérios do gozo feminino, Lacan denota que o que não existe  a "Mulher" com "M" maiúsculo, essa figura que aparece na história das ideias desde Platão como uma espécie  de acidente  evolutivo e cuja função é ser a ressonância ou o mero receptáculo do gozo masculino. A Mulher com maiúscula não é o negativo do Homem com maiúscula, e sim um sujeito cujo gozo é de natureza outra, assimétrica. Tal formulação também elimina o Homem com maíuscula.  Lacan lança mão das funções matemáticas para denotar que cada sujeito é singular como diferentes números atribuídos a uma função matemática.A mulher é uma função distinta da mãe, como o homem é do pai. Mulheres podem ser pais e homens podem ser mães. Isso demonstra nossa total libertação do determinismo tanto biológico quanto cultural.
 E isso nos leva a segunda frase, "não existe relação sexual". desde o século XIX que Freud intuiu a natureza  fantasística da sexualidade humana. Lacan expandiu esta noção afirmando que não é possível relacionar-se sem que o outro se encaixe nas coordenadas de nosso desejo. É aqui que o filósofo Slavoj Zizek sintetiza o pensamento de Lacan, quando trata do nosso despreendimento do físico nas relações contemporâneas:
Diz Zizek:
“Um dos lugares-comuns de hoje é que o chamado sexo "virtual", ou "cibernético", representa uma ruptura radical com o passado, uma vez que, nele, o contato sexual efetivo com o "outro real" perde terreno para o prazer masturbatório, cujo suporte integral é um outro virtual —
o sexo por telefone, a pornografia, até o "sexo virtual" computadorizado... A
resposta lacaniana a isso é que, primeiro, temos que denunciar o mito do "sexo
real", supostamente possível "antes" da chegada do sexo virtual: a tese de Lacan
de que "não existe relação sexual" significa, precisamente, que a estrutura do
ato sexual "real" (do ato praticado com um parceiro de carne e osso) já é
intrinsecamente fantasmática; o corpo "real" do outro serve apenas de apoio
para nossas projeções fantasmáticas. Em outras palavras, o "sexo virtual" em
que uma luva simula os estímulos do que se vê na tela, e assim por diante, não é
uma distorção monstruosa do sexo real, mas simplesmente torna manifesta sua
estrutura fantasmática subjacente”
Da mesma forma que a liberdade é algo que existe para além das prisões e das correntes, o amor é algo que  sempre prescindiu do objeto físico, concreto.
Naquilo que definimos como modernidade ocidental, tanto o amor quanto a liberdade entre os homo sapiens estão submetidos  aos paradoxos da ideologia, da cultura e da singularidade tal como  a regra de Mefistófeles, do Fausto de Goethe: "nós, demonios e fantasmas, estamos submetidos a uma lei: devemos sair pelo mesmo lugar por onde entramos; o primeiro ato é livre, mas somos escravos do  segundo".Somos condenados a incluir sempre no amor, no sexo e na liberdade este grande Outro simbólico, esta narrativa fundante, geradora de conceitos e contratos.
A onda do Amor Livre, ou Poliamor explode em movimentos políticos, na internet, em documentários e surge como grande problemática para aqueles que se dedicam a compreender e escutar a subjetividade humana. Uma problemática mais que bem- vinda, enfim, porque enfatiza, de uma vez por todas que o homo sapiens triunfou, especialmente nos séculos XX e XXI ao  produzir linhas de fuga ao patriarcalismo e ao machismo que durante séculos condenaram simbolica e fisicamente a negação violenta do nosso desejo de amar.

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