“...não
devemos nos esquecer da ambiguidade radical do Real lacaniano: ele não é o
referente último que deve ser coberto/reformado/domesticado pela tela da
fantasia — o Real é também e primariamente a própria tela como o obstáculo que
sempre-já distorce nossa percepção do referente, da realidade lá fora. (ZIZEK,
2008, p. 172)”.
O cinema é uma arte criada para o século XX e, de certa
forma o inaugura, juntamente com a descoberta Freudiana do inconsciente e do
princípio de realidade. Da mesma forma que o sonho é a realização de um desejo, a escuridão da
tela seguida da exibição arrebatadora de um real que nos diz o que devemos
desejar, inundando a percepção com uma noção de realidade na qual os três
registros desvelam-se imbricados: real, imaginário e simbólico, ou signo,
significante e significado.
O cinema tem a potência de nos fazer alucinar de delirar, e
como no sonho, somos levados por instantes a “esquecer” que aquilo que experimentamos como “verdade”
é a resultante de texto, roteiro, montagem, edição. Assim também o é no caso da
violência: a violência “real” é imbricada sinergicamente com ao violência “imaginária”
e “simbólica’.
Apresentamos aqui o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre
Violência, cinema e psicanálise, que chamamos de LAPOT. Nosso laboratório tem
como objeto de desejo e pesquisa a exploração
psicanalítica e filosófica da radicalidade da violência no cinema.
Nossa pesquisa propõe uma provocação conceitual sobre a
violência como ela é percebida na obra cinematográfica, jornalística e
televisiva através de uma incursão metodológica que transversaliza a semiótica,
a fenomenologia e a psicanálise. Assim como Freud descobriu que o trauma não é
algo oriundo de uma “realidade” a violência também pode ser analisada como
produção sintomática suas expressões simbólicas, reais e imaginárias.
O objetivo deste encontro é propor um convite a exploração
do cinema como potência teórica e analítica que criam condições de
possibilidade de pensar a violência em
uma sociedade do transbordamento ideológico e semiótico da experiência protagonizado pela internet,
pelo cinema e pela televisão.
Prólogo
Milos- As crianças incomodam, não posso fazer isso no jardim de infância
Vukmir- Nesse caso, entre você e as crianças, eu escolho as crianças, elas são a minha
especialidade, a minha vida. A culpa é minha, eu achei que se você não soubesse
antes você...
Milos-Se eu soubesse desde o início eu teria recusado
Vukmir- O que você disse? Jardim de infância? Pode-se dizer
que sim, toda esta merda de país é um jardim de infância, um bando de crianças
rejeitadas por seus pais. Toda a sua vida você foi obrigado a provar que é
capaz de cuidar de si mesmo, para provar que você fazia cocô, comia, fodia,
bebia, sangrava, ganhava dinheiro...fazia tudo o que fosse preciso para
sobreviver até que você morre. Você acreditaria se eu te dissesse que eu e esta
família maravilhosa que você está tão ansioso para deixar somos a única
garantia de sobrevivência desta nação? Nós
somos a espinha dorsal da economia deste país. Só nós podemos provar que esta
nação está viva e pronta para qualquer coisa.
Milos- Eu posso ver que você está louco, eu não preciso de
provas. Apenas me diga, como isso se conecta com a pornografia?
Vukmir- Não.. Milos... Não, não não, pornografia não
Milos, não é pornografia, é a própria
vida! É a vida de uma vítima. Amor, arte, sangue! Carne e alma de uma vítima,
transmitidos ao vivo para o mundo que perdeu tudo e agora está pagando para
observar no conforto de uma poltrona.
Milos- Eu não tenho nenhuma dúvida que vende bem com base na
grana que você me ofereceu.
Vukmir- Vítimas vendem, Milos. Vender uma vítima é o mais
caro neste mundo. A Vítima sente mais e sofre melhor.Nós somos vítimas Milos.
Você, eu, toda esta nação é uma vítima.
Milos- Nós estamos apenas muito atrasados. Eu não serei uma
vítima por isso.
Vukmir-Mas Milos, você é o único neste filme que não é uma
vítima!
Milos- É mesmo?
Na parede, uma tela de projeção é aberta
Vukmir- Me permita, como seu guia, mostrar a você o poder de
uma vítima real.
A imagem que aparece é de um a mulher grávida em cima de uma
mesa sentindo dores do parto. Um homem com óculos escuros entra na sala e faz o
trabalho de parto, abaixa suas calças e começa a penetrar o bebê. A cena é
intercalada pelo olhar da mulher, que esboça um leve sorriso de satisfação.
Milos evita olhar e sai correndo da sala.
Vukmir-Milos, será que você não entendeu? Este é um novo
gênero. (em inglês) “New born porn”!!! New born porn!!!
Em Porto Alegre desde 2005 é realizado um dos maiores
festivais cinematográficos alternativos da America Latina e do mundo, o “Fantaspoa”, cuja proposta é apresentar ao
espectador o que há de mais atual ou o que é considerado clássico no cinema
“fantástico”, com ênfase no terror. Alguns filmes que interessam nesta pesquisa
foram apresentados com grande polêmica neste festival, como o exemplar A Serbian Film (em sérvio, Српски филм; em português, Terror sem Limites) é o primeiro filme
do diretor sérvio Srđan Spasojević, lançado
em 2010. O filme estreou no
Brasil em Porto Alegre, Fantaspoa e sua
exibição e comercialização foram proibidas em diversos países. “O climax de “A Serbian Film”, e que gerou a
polêmica em torno do filme, exibe uma cena de trabalho de parto na qual o
recém nascido é estuprado sob o olhar
extasiado da mãe (cujo diálogo é transcrito no prólogo deste artigo). Para além
disso na segunda metade do roteiro, o
protagonista, após ter sido dopado e forçado a participar das filmagens de um
snuff movie, tem acesso a suas próprias memórias em flashbacks confusos e,
principalmente através das gravações da
noite anterior.
No século XXI, especialmente nos Balcãs, a produção
cinematográfica cuja temática
transversaliza a pornografia, a violência e a política é abundante, e podemos citar ainda outras
duas obras obras a serem discutidas analisadas neste projeto: “Vida e morte de
uma gangue pornô”, de Mladen
Djorjevic, e “Funny Games” de Michael
Hanecke. O primeiro filme foi vencedor da mostra competitiva do FANTASPOA 2010,
que conta a história de um estudante de cinema frustrado que cria uma trupe de
teatro pornô itinerante e termina por produzir snuff movies cujos atores são vítimas decorrentes da
guerra da Bósnia. Este filme apresenta
um conceito que dá nome a nosso grupo LAPOT, palavra que denota o ritual sérvio
medieval de sacrifício dos idosos que “não servem mais”. A civilização é
apresentada como interface amigável da barbárie, como também conta a história
de “Funny Games”, película alemã que conta a história de dois cidadãos de boa
educação que invadem residências de verão e torturam um casal de classe média
com requintes de crueldade, porém sem jamais perder a postura bem-educada e
polida. Em funny games é possível explicitar o que Zizek chama de “critica a
ideologia” há uma certa ambiguidade nos personagens cujo discurso é polido e
“civilizado” enquanto mostra a “família” “vitima” burguesa que se sente desconfortável com
estranhos que invadem seu campo de golf
e sua marina particular em uma dimensão oposta. A cena de abertura é
emblemática: enquanto viajam em seu carro rumo a casa de campo o casal faz uma
competição de quem adivinha os compositores eruditos que tocam no carro, e repentinamente o diretor sobrepõe à musica
uma trilha sonora de grind core com
urros guturais e volume ensurdecedor.
Escolhidos como
disparadores deste projeto, os três filmes tratam, para além da estética
escatológica, de temas sociais, psicológicos e principalmente políticos. A
violência explícita é apresentada em uma camada fílmica que Zizek (2014) chama
de violência subjetiva, que escandaliza o espectador e o confronta com outras
categorias que ele mesmo chama de violência simbólica ou sistêmica, pois
denunciam que o cinema é apenas arte, ficção e roteiro, enquanto os extermínios
e atrocidades de uma guerra de genocídio com interesses econômicos e políticos
constituem a própria e assombrosa realidade.
Em sua fundação em fins do século XIX, o cinema instaurou a
dicotomia entre a representação da realidade pelos irmãos Lumiére, que teve
consequências na pesquisa antropológica (e no chamado documentário), e o cinema
de Thomas Edison, que derivou para adaptações de obras literárias, musicas e entretenimento, o germen para a grande
produção americana do século XX (Costa,
2014). Esta dicotomia, do ponto de vista da virtualidade experimentada pelo
sujeito no ato fenomenológico e perceptivo, converte-se na clivagem paradoxal
entre a ficção e a realidade , afinal,
mesmo sendo o cinema documentário ou ficção, “tudo é filme”.
O cinema, assim, apresenta-se como tensão imanente que
oscila entre o acontecimento e sua representação, que se dobra no que concerne
ao próprio do mundo dos sujeitos. Para se criar este tensionamento, o cineasta
parte de um tema que provoca sensações e olhares. A vocação do cinema é levar o
espectador, ao mesmo tempo, para longe e para perto de si mesmo, para nos
aproximar e ao mesmo tempo nos afastar de nosso objeto de desejo, em um jogo de
luz e sombra. Andrei Tarkovsky levou
isso a cabo na obra “Solaris”, a expressão cinematográfica do romance de ficção
científica do polonês Stanislaw Lem. Em
Solaris a humanidade descobre um
planeta que possui uma substância coloidal que é capaz de captar memórias e
transformá-las em matéria. O herói da história é Kelvin, um psicólogo que
visita a estação para investigar
estranhos acontecimentos na estação, como o enlouquecimento dos
cientistas. Ao desembarcar, Kelvin constata a presença de visitantes dentro da
estação e ele próprio recebe a visita de sua esposa, falecida 10 anos atrás por suicídio, e experimenta a
angústia de encontrar-se com seu objeto
de desejo (Kelvin sentia-se culpado), ao mesmo tempo que a esposa não era “ela
mesma” e sim o que a substância solariana era capaz de copiar de suas
memórias.Após a impressão incial de horror e de testar cientificamente sua
sanidade, Kelvin envia a visitante para
o espaço em um foguete, porém ela se materializa novamente na manhã seguinte
com novas memórias capturadas. Solaris é um exemplo da parcialidade objetal do
imaginário, da mulher como fantasia masculina de seu próprio narcisismo. O
importante é que a substância solariana escolhe a imagem dos visitantes. Ela
diz o que desejamos, assim como é o
cinema. A angústia é a razão própria da perda do ato de desejar pelo advento do
encontro com o objeto de desejo. Em “Além do princípio do prazer” Freud explora
alegoricamente a angústia referindo-se a
escala evolutiva dos unicelulares aos pluricelulares no que diz respeito a
regulação daquilo que “entra” e daquilo que “sai” do organismo. Para uma
célula, é possível adaptar a membrana
para evitar os estímulos ameaçadores que vem “de fora”, o difícil é lidar com
os que vem de “dentro”. Freud aqui inaugura uma curiosa teoria sobre o que anos
mais tarde Lacan postularia com os imbricamentos entre o real, o imaginário e o
simbólico.O princípio do prazer está em interface com o princípio da realidade.
As pistas para isso estão já no abandono da teoria do trauma, na constatação
das lembranças encobridoras e das fantasias sexuais das histéricas. Anna O. nos
ensinou que nossas memórias não são “arquivos” (assim como o material do sonho)
e sim material fantasioso constantemente alterado pelo
inconsciente, bem como no Caso do Homem Lobo percebemos que a cena traumática não o é por
essência, e sim pode tornar-se traumática
a posteriori como a cena do
coitus a tergo também trabalhada por Zizek no vídeo “A realidade do virtual”.Desta forma não criamos a fantasia para fugir da “real”idade, e sim esta é um
artificio inventado para escaparmos de nossas fantasias. É a realidade que precisa se encaixar nas coordenadas de nosso
desejo. Por isso quando a escuridão toma conta de uma sala de cinema e o filme
tem início, experimentamos aquilo que Lacan chama de “real”:os personagens são
eles mesmos, e não atores, as cenas acontecem sem pensarmos na edição, o que
imita sangue é sangue.
A cena polêmica e proibida de um recém-nascido violentado
invade o espectador com sua violência absurda e perturbadora, contudo,
profissionais de medicina, serviço social ou segurança pública lidam com abusos
sexual infantil em seus cotidianos. Não há nada
exibido nos filmes que não seja escutado no consultório, nos serviços de
assistência a vítimas de violência, nos hospitais, presídios, enfim na esfera
da vida nua ou da vida política (no sentido dado pelo filósofo Giorgio Agamben,
2012). O “Real” do cinema,
paradoxalmente apresenta ao espectador acesso ao próprio imaginário cotidiano.
A violência cinematográfica propõe um olhar estético, virtual, que possibilita
a análise filosófica de uma realidade de um social, ou, nas palavras de Lacan,
um “Outro”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário