Não fuja da luta, covarde

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Empate

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

"A multiplicidade de olhares e sentidos da violência e da pornografia no cinema: uma análise semiótica, fenomenológica e psicanalítica"





“...não devemos nos esquecer da ambiguidade radical do Real lacaniano: ele não é o referente último que deve ser coberto/reformado/domesticado pela tela da fantasia — o Real é também e primariamente a própria tela como o obstáculo que sempre-já distorce nossa percepção do referente, da realidade lá fora. (ZIZEK, 2008, p. 172)”.
O cinema é uma arte criada para o século XX e, de certa forma o inaugura, juntamente com a descoberta Freudiana do inconsciente e do princípio de realidade. Da mesma forma que o sonho  é a realização de um desejo, a escuridão da tela seguida da exibição arrebatadora de um real que nos diz o que devemos desejar, inundando a percepção com uma noção de realidade na qual os três registros desvelam-se imbricados: real, imaginário e simbólico, ou signo, significante e significado.
O cinema tem a potência de nos fazer alucinar de delirar, e como no sonho, somos levados por instantes a “esquecer”  que aquilo que experimentamos como “verdade” é a resultante de texto, roteiro, montagem, edição. Assim também o é no caso da violência: a violência “real” é imbricada sinergicamente com ao violência “imaginária” e “simbólica’.
Apresentamos aqui o Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Violência, cinema e psicanálise, que chamamos de LAPOT. Nosso laboratório tem como  objeto de desejo e pesquisa a exploração psicanalítica e filosófica da radicalidade da violência no cinema.
Nossa pesquisa propõe uma provocação conceitual sobre a violência como ela é percebida na obra cinematográfica, jornalística e televisiva através de uma incursão metodológica que transversaliza a semiótica, a fenomenologia e a psicanálise. Assim como Freud descobriu que o trauma não é algo oriundo de uma “realidade” a violência também pode ser analisada como produção sintomática suas expressões simbólicas, reais e imaginárias.
O objetivo deste encontro é propor um convite a exploração do cinema como potência teórica e analítica que criam condições de possibilidade  de pensar a violência em uma sociedade do transbordamento ideológico e semiótico   da experiência protagonizado pela internet, pelo cinema e pela televisão.


Prólogo

Milos- As crianças incomodam, não posso  fazer isso no jardim de infância
Vukmir- Nesse caso, entre você e as crianças, eu  escolho as crianças, elas são a minha especialidade, a minha vida. A culpa é minha, eu achei que se você não soubesse antes você...
Milos-Se eu soubesse desde o início eu teria recusado
Vukmir- O que você disse? Jardim de infância? Pode-se dizer que sim, toda esta merda de país é um jardim de infância, um bando de crianças rejeitadas por seus pais. Toda a sua vida você foi obrigado a provar que é capaz de cuidar de si mesmo, para provar que você fazia cocô, comia, fodia, bebia, sangrava, ganhava dinheiro...fazia tudo o que fosse preciso para sobreviver até que você morre. Você acreditaria se eu te dissesse que eu e esta família maravilhosa que você está tão ansioso para deixar somos a única garantia de sobrevivência desta nação?  Nós somos a espinha dorsal da economia deste país. Só nós podemos provar que esta nação está viva e pronta para qualquer coisa.
Milos- Eu posso ver que você está louco, eu não preciso de provas. Apenas me diga, como isso se conecta com a pornografia?
Vukmir- Não.. Milos... Não, não não, pornografia não Milos,  não é pornografia, é a própria vida! É a vida de uma vítima. Amor, arte, sangue! Carne e alma de uma vítima, transmitidos ao vivo para o mundo que perdeu tudo e agora está pagando para observar no conforto de uma poltrona.
Milos- Eu não tenho nenhuma dúvida que vende bem com base na grana que você me ofereceu.
Vukmir- Vítimas vendem, Milos. Vender uma vítima é o mais caro neste mundo. A Vítima sente mais e sofre melhor.Nós somos vítimas Milos. Você, eu, toda esta nação é uma vítima.
Milos- Nós estamos apenas muito atrasados. Eu não serei uma vítima por isso.
Vukmir-Mas Milos, você é o único neste filme que não é uma vítima!
Milos- É mesmo?
Na parede, uma tela de projeção é aberta
Vukmir- Me permita, como seu guia, mostrar a você o poder de uma vítima real.
A imagem que aparece é de um a mulher grávida em cima de uma mesa sentindo dores do parto. Um homem  com óculos escuros entra na sala e faz o trabalho de parto, abaixa suas calças e começa a penetrar o bebê. A cena é intercalada pelo olhar da mulher, que esboça um leve sorriso de satisfação.
Milos evita olhar e sai correndo da sala.
Vukmir-Milos, será que você não entendeu? Este é um novo gênero. (em inglês) “New born porn”!!! New born porn!!!
Em Porto Alegre desde 2005 é realizado um dos maiores festivais cinematográficos alternativos da America Latina e do mundo,  o “Fantaspoa”, cuja proposta é apresentar ao espectador o que há de mais atual ou o que é considerado clássico no cinema “fantástico”, com ênfase no terror. Alguns filmes que interessam nesta pesquisa foram apresentados com grande polêmica neste festival, como o exemplar A Serbian Film (em sérvio, Српски филм; em português, Terror sem Limites) é o primeiro filme do diretor sérvio Srđan Spasojević, lançado em 2010. O filme  estreou no Brasil em Porto Alegre,  Fantaspoa e sua exibição e comercialização foram proibidas em diversos países. “O  climax de “A Serbian Film”, e que gerou a polêmica em torno do filme, exibe uma cena de trabalho de parto na qual o recém  nascido é estuprado sob o olhar extasiado da mãe (cujo diálogo é transcrito no prólogo deste artigo). Para além disso na segunda metade do roteiro,  o protagonista, após ter sido dopado e forçado a participar das filmagens de um snuff movie, tem acesso a suas próprias memórias em flashbacks confusos e, principalmente através das  gravações da noite anterior. 
No século XXI, especialmente nos Balcãs, a produção cinematográfica  cuja temática transversaliza a pornografia, a violência e a política  é abundante, e podemos citar ainda outras duas obras obras a serem discutidas analisadas neste projeto: “Vida e morte de uma gangue pornô”,  de Mladen Djorjevic,  e “Funny Games” de Michael Hanecke. O primeiro filme foi vencedor da mostra competitiva do FANTASPOA 2010, que conta a história de um estudante de cinema frustrado que cria uma trupe de teatro pornô itinerante e termina por produzir snuff movies  cujos atores são vítimas decorrentes da guerra da Bósnia. Este filme  apresenta um conceito que dá nome a nosso grupo LAPOT, palavra que denota o ritual sérvio medieval de sacrifício dos idosos que “não servem mais”. A civilização é apresentada como interface amigável da barbárie, como também conta a história de “Funny Games”, película alemã que conta a história de dois cidadãos de boa educação que invadem residências de verão e torturam um casal de classe média com requintes de crueldade, porém sem jamais perder a postura bem-educada e polida. Em funny games é possível explicitar o que Zizek chama de “critica a ideologia” há uma certa ambiguidade nos personagens cujo discurso é polido e “civilizado” enquanto mostra a “família” “vitima”  burguesa que se sente desconfortável com estranhos que invadem seu campo de golf  e sua marina particular em uma dimensão oposta. A cena de abertura é emblemática: enquanto viajam em seu carro rumo a casa de campo o casal faz uma competição de quem adivinha os compositores eruditos que tocam no carro,  e repentinamente o diretor sobrepõe à musica uma trilha sonora de grind core  com urros guturais e volume ensurdecedor.
 Escolhidos como disparadores deste projeto, os três filmes tratam, para além da estética escatológica, de temas sociais, psicológicos e principalmente políticos. A violência explícita é apresentada em uma camada fílmica que Zizek (2014) chama de violência subjetiva, que escandaliza o espectador e o confronta com outras categorias que ele mesmo chama de violência simbólica ou sistêmica, pois denunciam que o cinema é apenas arte, ficção e roteiro, enquanto os extermínios e atrocidades de uma guerra de genocídio com interesses econômicos e políticos constituem a própria e assombrosa realidade.

Em sua fundação em fins do século XIX, o cinema instaurou a dicotomia entre a representação da realidade pelos irmãos Lumiére, que teve consequências na pesquisa antropológica (e no chamado documentário), e o cinema de Thomas Edison, que derivou para adaptações de obras literárias, musicas  e entretenimento, o germen para a grande produção americana do século XX  (Costa, 2014). Esta dicotomia, do ponto de vista da virtualidade experimentada pelo sujeito no ato fenomenológico e perceptivo, converte-se na clivagem paradoxal entre a ficção e  a realidade , afinal, mesmo sendo o cinema documentário ou ficção, “tudo é filme”.

O cinema, assim, apresenta-se como tensão imanente que oscila entre o acontecimento e sua representação, que se dobra no que concerne ao próprio do mundo dos sujeitos. Para se criar este tensionamento, o cineasta parte de um tema que provoca sensações e olhares. A vocação do cinema é levar o espectador, ao mesmo tempo, para longe e para perto de si mesmo, para nos aproximar e ao mesmo tempo nos afastar de nosso objeto de desejo, em um jogo de luz e sombra. Andrei Tarkovsky  levou isso a cabo na obra “Solaris”, a expressão cinematográfica do romance de ficção científica do polonês Stanislaw Lem. Em  Solaris  a humanidade descobre um planeta que possui uma substância coloidal que é capaz de captar memórias e transformá-las em matéria. O herói da história é Kelvin, um psicólogo que visita a estação para investigar  estranhos acontecimentos na estação, como o enlouquecimento dos cientistas. Ao desembarcar, Kelvin constata a presença de visitantes dentro da estação e ele próprio recebe a visita de sua esposa, falecida  10 anos atrás por suicídio, e experimenta a angústia  de encontrar-se com seu objeto de desejo (Kelvin sentia-se culpado), ao mesmo tempo que a esposa não era “ela mesma” e sim o que a substância solariana era capaz de copiar de suas memórias.Após a impressão incial de horror e de testar cientificamente sua sanidade,  Kelvin envia a visitante para o espaço em um foguete, porém ela se materializa novamente na manhã seguinte com novas memórias capturadas. Solaris é um exemplo da parcialidade objetal do imaginário, da mulher como fantasia masculina de seu próprio narcisismo. O importante é que a substância solariana escolhe a imagem dos visitantes. Ela diz o que  desejamos, assim como é o cinema. A angústia é a razão própria da perda do ato de desejar pelo advento do encontro com o objeto de desejo. Em “Além do princípio do prazer” Freud explora alegoricamente  a angústia referindo-se a escala evolutiva dos unicelulares aos pluricelulares no que diz respeito a regulação daquilo que “entra” e daquilo que “sai” do organismo. Para uma célula, é possível adaptar   a membrana para evitar os estímulos ameaçadores que vem “de fora”, o difícil é lidar com os que vem de “dentro”. Freud aqui inaugura uma curiosa teoria sobre o que anos mais tarde Lacan postularia com os imbricamentos entre o real, o imaginário e o simbólico.O princípio do prazer está em interface com o princípio da realidade. As pistas para isso estão já no abandono da teoria do trauma, na constatação das lembranças encobridoras e das fantasias sexuais das histéricas. Anna O. nos ensinou que nossas memórias não são “arquivos” (assim como o material do sonho) e sim material fantasioso constantemente alterado  pelo  inconsciente, bem como no Caso do Homem Lobo  percebemos que a cena traumática não o é por essência, e sim pode tornar-se traumática  a posteriori  como a cena do coitus a tergo também trabalhada por Zizek no vídeo “A realidade do virtual”.Desta forma não criamos a fantasia para fugir da “real”idade, e sim esta é um artificio inventado para escaparmos de nossas fantasias. É a realidade que  precisa se encaixar nas coordenadas de nosso desejo. Por isso quando a escuridão toma conta de uma sala de cinema e o filme tem início, experimentamos aquilo que Lacan chama de “real”:os personagens são eles mesmos, e não atores, as cenas acontecem sem pensarmos na edição, o que imita sangue é sangue.

A cena polêmica e proibida de um recém-nascido violentado invade o espectador com sua violência absurda e perturbadora, contudo, profissionais de medicina, serviço social ou segurança pública lidam com abusos sexual infantil em seus cotidianos. Não há nada  exibido nos filmes que não seja escutado no consultório, nos serviços de assistência a vítimas de violência, nos hospitais, presídios, enfim na esfera da vida nua ou da vida política (no sentido dado pelo filósofo Giorgio Agamben, 2012).  O “Real” do cinema, paradoxalmente apresenta ao espectador acesso ao próprio imaginário cotidiano. A violência cinematográfica propõe um olhar estético, virtual, que possibilita a análise filosófica de uma realidade de um social, ou, nas palavras de Lacan, um “Outro”.


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