Não fuja da luta, covarde

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Empate

terça-feira, 15 de março de 2016

Memórias póstumas de um zumbi ingênuo





Hoje é 15 de março de 2016 e a esfera pública brasileira convulsiona em uma guerra política, ideológica e informática. Neste momento todos os periódicos do Brasil, impressos, televisivos ou eletrônicos apresentam a delação de um Senador que é o símbolo daquilo que os analistas chamam de fisiologia política. Delcídio pe um daqueles políticos que se adaptou perfeitamente àquilo que se chama eufemisticamente de governabilidade (não confundir com a governamentalidade de Foucault. Aliás, aproveito que citei o grande pensador francês para citar outra obra famosa "Vigiar e Punir", na qual ele apresenta as horripilantes descrições dos grandes espetáculos punitivos  que preexistiram as penas disciplinares  até meados do século XIX. Em muitos dos suplícios, os condenados tinham que ser amordaçados ou ter alguma espécie  de freio na língua porque as autoridades eclesiais e feudais temiam que, à beira da morte inevitável, falassem livre e irresponsavelmente ou blasfemassem.Sim, meus caros, os supliciados, por vezes, eram delatores não premiados. Pois nosso caríssimo Delcídio Amaral possui uma grande ficha de serviços prestados a governabilidade política brasileira,e, atolado até o pescoço e exposto em praça pública em um grande circo de interesses, resolveu abrir o bico com a galhardia de quem será torturado, esquartejado e queimado. E no texto da Delação suplicial de Delcídio, tal qual a série de TV "The Walking Dead' na qual todo mundo vestá infectado e cedo ou tarde vai virar Zumbi, é questão de tempo para todos nós sermos corruptos e cairmos na Operação Lava-Jato, 
 Em nossa recente história democrática,  um mesmo tipo de transformação parece se repetir, como diria Zizek, primeiro como tragédia depois como farsa: a metamorfose invertida da borboleta política, filosófica e idealista em larva rastejante e mesquinha  da fisiologia  administrativa. Após os turbulentos anos da eleição  fracassada de Fernando Collor,  subiu ao poder o príncipe dos sociólogos, Fernando Henrique Cardoso, que muito pouco de sua sociologia aplicou na administração do país, marcada pela radical retirada do Estado da vida pública.

Após 08 anos tomaram o poder seus opositores, vinculados ao partido político mais democrático e engajado politicamente de nossa história, forjado em décadas de movimentos sociais e lutas por direitos humanos e já tendo provado que o sonho era possível através de administrações estaduais em municipais (algumas como Porto Alegre foram exemplo de esquerda para o MUNDO). Pena que o Lula colocou terno e gravata, cortou a barba e parou de falar mal da Rede Globo...

. A administradora Dilma  Roussef diminuiu impostos das grandes montadoras de automóveis  e se recusou a negociar com o motor intelectual do país, a  classe que mais lutou ideologicamente para elegê-la por duas longas greves seguidas.  Pois após quatro anos de administração pragmática  a mesma classe que criticou Dilma por 4 anos  lutou bravamente para reelegê-la, aderindo a uma arriscada, porém necessária lógica de ruim com ela, pior sem ela. Eu votei em Dilma no segundo turno porque passei 8 anos vendo minha Universidade ser sucateada pelo PSDB, agora vejo que, assim como os Sociais Democratas foram transformados em Zumbis pelo PFL (hoje DEM), o Partido dos Trabalhadores deixou  o simulacro de direita do PMDB crescer em seu governo como um câncer. E hoje vemos a esquerda e a direita se esfaquearem a esmo em uma guerra sem fim pelo poder, e a semente do fascismo cresce a cada dia com a ascensão de sujeitos infames como Bolsonaro, Silas Malafaia, Revoltados Oline e Movimento Brasil Livre. Mas o que aconteceu com a esquerda no Brasil, especificamente com o PT, para além da sabotagem e do eterno ódio de boa parte das elites?

Não sei exatamente como ou o por que, mas sempre que penso na história do Partido dos Trabalhadores no Brasil, desde a eleição do lendário Olivio Dutra em Porto Alegre até Dilma Roussef, lembro de Machado de Assis, e da teoria das janelas.

Machado de Assis foi autor de uma  obra revolucionária na história da literatura, a qual li mais de uma vez quando ainda freqüentava os bancos escolares, e hoje ainda encontra-se fixada em minha retina: Memórias Póstumas de Brás Cubas.  Para minha percepção ligeira de adolescente, a  primeira leitura, atravessada pela sofreguidão do encontro,  foi longa, extensa, tortuosa, tal é a complexidade de reflexões e inflexões profundas e cáusticas do personagem principal, Brás Cubas, cuja narrativa parte de um lugar discursivo absurdo: as memórias de um defunto. É claro que, já nos anos 90, isso não me surpreendeu, afinal, o século XX foi saturado de histórias de mortos-vivos através da literatura  aventuresca ou do cinema, mas, segundo dizia minha professora de literatura,  em 1880, em um Brasil pouco alfabetizado, um livro inicialmente publicado em capítulos em um jornal e escrito em primeira pessoa por um defunto provavelmente provocou náuseas legítimas nos leitores, afinal, a literatura, a música e o teatro condensavam toda a carga de alucinações artísticas e ficcionais que o cinema e a televisão hoje quase monopolizam.

E, ademais, em sua funérea narrativa, Brás Cubas delineia a constrangedora saga de um burguês medíocre, mesquinho, um dândi vagabundo e de vida fácil, absolutamente desprovido  de moral e consciência. Filho de uma elite abastada, o personagem, ao longo de sua vida usufrui e corrói a fortuna de seu pai  enquanto experimenta diferentes carreiras profissionais fracassadas e relações amorosas inconclusas, cujo abandono é justificado por um cinismo mórbido, ressentido, corrosivo. Em algum momento do romance Brás Cubas se apaixona por uma linda mulher,  cujo único defeito é ser manca, e sua narrativa da relação é repleta de amor, paixão mas sempre atravessada pela ideia fixa  em torno do defeito físico da amada, culminando no seu abandono lento e absolutamente inescrupuloso, sutil, como se claudicasse em reconhecer que de fato a rejeitara.

Nosso mais famoso Zumbi abre o romance com uma dedicatória:

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança, estas memórias póstumas”.

Uma espécie de alívio autopunitivo, porém desprovido de culpa, afinal, apenas depois de morto o canalha decide narrar sua farsa biográfica. Machado de Assis  era mulato nasceu pobre e adquiriu prestígio, dinheiro e posição social com seu próprio talento e disciplina, em uma época em que nosso país ainda vivia na escravocracia e era comum membros da elite decadente viverem de favor ou adquirirem lugar social pela bajulação. “Memórias Póstumas” é uma espécie de desabafo escrito como contraponto a seus colegas  de juventude, os escritores e poetas românticos, divididos entre narrativas nacionalistas e ufanistas ou heróis do estilo mal-do-século, a maioria mortos ainda na juventude. Pois o principal sobrevivente da geração romântica carregou seus contos, crônicas e romances de uma aguda e  ferina crítica dos costumes, e não é a toa que tenha se tornado  o grande expoente do chamado realismo.

E a “realidade  realista”  cínica e pragmática e do Brasil talvez tenha mudado muito pouco desde então, como Brás cubas exemplifica na sua teoria das janelas, na qual sempre que se fecha uma janela, é preciso abrir outra. A teoria das janelas surge em minha passagem preferida do livro, a meu ver a síntese de no que a esquerda brasileira  se tornou  ao assumir a presidência  da república no Brasil.

Na ocasião, Brás Cubas andava pela rua e encontrou uma moeda, uma meia dobra de ouro:

“Nessa noite não pensei mais na moeda; mas no dia seguinte, recordando o caso, senti uns repelões da consciência, e uma voz que me perguntava por que diabo seria minha uma moeda que eu não herdara nem ganhara, mas somente achara na rua. Evidentemente não era minha; era de outro, daquele que a perdera, rico ou pobre, e talvez fosse pobre, algum operário que não teria com que dar de comer à mulher e aos filhos; mas se fosse rico, o meu dever ficava o mesmo. Cumpria restituir a moeda e o melhor meio, o único meio, era fazê-lo por intermédio de um anúncio ou da polícia. Enviei um carta ao chefe de polícia, remetendo-lhe o achado, e rogando-lhe que, pelos meios a seu alcance, fizesse devolvê-lo às mãos do verdadeiro dono.

Mandei a carta e almocei tranqüilo, posso até dizer que jubiloso. Minha consciência valsara tanto na véspera, que chegou a ficar sufocada, sem respiração; mas a restituição da meia dobra foi uma janela que se abriu para o outro lado da moral; entrou uma onda de ar puro, e a pobre dama respirou à larga. Ventilai as consciências! não vos digo mais nada. Todavia, despido de quaisquer outras circunstâncias, o meu ato era bonito, porque exprimia um justo escrúpulo, um sentimento de alma delicada. Era o que me dizia a minha dama interior, com um modo austero e meigo a um tempo; é o que ela me dizia, reclinada ao peitoril da janela aberta.”
Alguns dias depois, caminhando pela praia em Botafogo, nosso herói tropeça em um misterioso embrulho. Como não havia ninguém por perto, resolve levá-lo para casa e verificar seu conteúdo: cinco contos de réis, que fazem novamente seu pensamento vibrar e refletir moralmente e finalmente agir da maneira mais sensata e pragmática possível.

Não se perdem cinco contos, como se perde um lenço de tabaco. Cinco contos levam-se com trinta mil sentidos, apalpam-se a miúdo, não se lhes tiram os olhos de cima, nem as mãos, nem o pensamento, e para se perderem assim totalmente, numa praia, é necessário que... Crime é que não podia ser o achado; nem crime, nem desonra, nem nada que embaciasse o caráter de um homem. Era um achado, um acerto feliz, como a sorte grande, como as apostas de cavalo, como os ganhos de um jogo honesto e até direi que a minha felicidade era merecida, porque eu não me sentia mau, nem indigno dos benefícios da Providência.

— Estes cinco contos, dizia eu comigo, três semanas depois, hei de empregá-los em alguma ação boa, talvez um dote a alguma menina pobre, ou outra coisa assim... hei de ver...
Nesse mesmo dia levei-os ao Banco do Brasil. Lá me receberam com muitas e delicadas alusões ao caso da meia dobra, cuja notícia andava já espalhada entre as pessoas do meu conhecimento; respondi enfadado que a coisa não valia a pena de tamanho estrondo; louvaram-me então a modéstia, — e porque eu me encolerizasse, replicaram-me que era simplesmente grande.”

E eu pouco mais tenho a dizer,  eu poderia encerrar esta coluna tentando imaginar nossa presidenta e nossos políticos   dizendo nas entrelinhas que é fácil ser revolucionário ou anarquista quando não temos um país para administrar ou contas a prestar ao FMI. Mas prefiro deixo o grande Machado de Assis falar por mim, por enquanto  não consigo pensar em nada mais original...

Um comentário:

  1. Belo texto Professor, talvez se nossos políticos conhecessem ou simplesmente empregassem a lei da equivalência das Janelas de Machado de Assis nosso Pais não minguaria nos restos deixados pela corja hipócrita que devia nos alçar a melhores condições.

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